quarta-feira, 31 de agosto de 2011

CAPÍTULO IV- O invasor

De onde ele veio? Com certeza devia ser um novo inquilino, ou não se arriscaria a subir até aqui, não teria coragem de desafiar os mistérios narrados pelos moradores do casarão sobre este andar. Eu estava lá, sobre o meu piano, na iminência de tocá-lo e assim fazer aquele homem desaparecer do meu mundo. Fitava-o curiosa e pronta para atacá-lo com as notas mais tristes e fúnebres que poderiam sair do meu instrumento.

Da pouca luz que havia sobre nós naquele cômodo pude ver que suas roupas eram surradas e maltrapilhas, decoradas com muitas cores, pelas manchas de dedos limpados nela. Seria ele um artista? O curioso é que ele não tinha o cheiro da boêmia a qual eu estava acostumada. Cheirava a tinta fresca e uma lavanda que não conseguia me recordar de que flor pertencia. Não era truculento e nem grosseiro, com certeza não era daqui. Não podia pertencer a esta casa e a tudo que ela abriga.

Eu, sim, pertencia a este lugar, e carregava comigo toda a impureza que esse ambiente guardava. Ele nada parecia com as paredes frias e sem vida dessa casa, e nem com os corredores escuros e solitários.

Eu não podia confiar, eu não devia trair e deixar que adentrassem o meu local seguro, que roubassem tudo que eu construí, melhor ainda, que eu inventei. Ele parecia tão perdido, balbuciou algo que não pude compreender, e ao invés de me atacar como eu estava pronta para fazer, pude ver, sob a única luz que incidia na sala do piano, que me lançava um sorriso, como há muito tempo eu não via. E como há muito tempo eu não retribuía.

Os sorrisos são brindes à um bom pagador, custam um preço mais elevado, essa foi a maneira como sempre fui ensinada. Dar um sorriso somente mediante pagamento. Nem me lembro mais a última vez que pude sorrir por vontade. Talvez tenha sido na época que o casarão ainda era cenário das grandes festas e sobrava muita comida para todos. Tínhamos naquela época motivos de sobra para sorrir, depois daqueles tempos o sorriso passou a ser artigo de luxo e raro. Mas pela primeira vez em muito tempo um ímpeto leve, sereno, veio a ponto de explodir nos meus lábios como que por encantamento. Eu retribui o sorriso para ele.

Mas, pela pouca luz sobre mim, ele não viu.

Por alguns segundos eu havia esquecido completamente o porquê eu estava sobre o meu piano, minha reação feroz em afugentá-lo passou e toquei uma música suave e bela. As notas e a melodia me levaram a tocar com uma felicidade nunca antes sentida, e ao mesmo tempo um pavor se apossava de mim. Ao fim da última nota, eu estava novamente sozinha no último andar, o homem de vestes com manchas de tinta havia se apagado dos meus olhos.

Ao aproximar o olhar do chão onde ele estava postado vi um guardanapo sujo jogado e ao cheirá-lo senti um forte cheiro de vinho tinto.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

CAPÍTULO III - O borrão de tinta

Como eu queria ter levado comigo mais guardanapos com jarros de vinho desenhados para continuar sorvendo a embriaguês necessária para que eu me permitisse o fulgor do não-juízo!

Eu cambaleava pelos corredores às tontas, mas com uma destreza nunca antes explorada por mim. Eu sabia bem onde queria ir e ia sem querer saber. Nessa hora eu me senti o sabido do ditado do meu pai.

Era frio, mas por baixo de minha casaca eu suava feito um leitão, um pouco pela bebida e um pouco pela a aventura de não ser tão eu o quanto me resguardava.

O casarão era só uma fachada velha que abrigava miseráveis. Tenho a exata sensação de como seria viver na rua, ao relento, pois nas noites de inverno o frio trincava os copos de vidro e nas tardes de verão o calor fazia derreter o gesso e pingar nas testas dormentes.

Não havia ninguém àquela hora vagando pelo casarão. Não havia luz e não havia razão. Somente a minha inconsciência a guiar meus trôpegos pés pelo assoalho rangente. Subi até o último patamar da casa e encarei o corredor sombrio tentando alcançar a luz que surgia de uma fresta de porta entreaberta.

Parecia que eu era um desses espíritos clichês a trilhar o caminho da luz no túnel escuro da morte. Mas não encontrei Deus depois da luz. Encontrei uma moça frágil de uns vinte e seis anos debruçada a um piano velho. Suas melenas castanhas desenhavam o contorno de seu rosto e se precipitavam até seus seios robustos; seus olhos eram de susto e surpresa; sua boca era de não falar; suas mãos eram de dama e suas vestes de donzela e por alguns segundos imaginei-a comendo minhas vísceras e fustigando-me com aqueles raivosos olhos negros.

Realmente minhas vísceras se contorceram ao vê-la. Era como se eu já esperasse por esse encontro há muito tempo. Então ficamos os dois parados e em silêncio, ao que me pareceu, por duas ou três eternidades.

Até que ela abaixou os olhos que me fuzilavam e tocou uma musica ao piano. A cada nota tocada uma cor da mocinha se embaralhava, até que ao final ela era aos meus olhos apenas um borrão de branco, vermelho e cinza...


Acordei no meu quarto, todo sujo de tinta e segurando firme a tela que eu estava pintando a minha derradeira mulher e, ao levantar a tela, percebi que eu no meio da minha bebedeira havia pintado alguma coisa nela: um borrão de tinta branca, vermelha e cinza.

Fiquei assustado. “Será que vivi apenas outra história pintada”, pensei comigo, mas quando virei a tela de costas percebi um nome escrito na madeira, com uma redonda e descaída letra. Lia-se perfeitamente, embora estivesse escrito suavemente à lápis, o nome “Manuela”.





CAPÍTULO II - O último andar

Lá estava eu, pela terceira vez só no dia de hoje, a andar sem rumo pelos corredores do casarão. Fazer caminhadas pelos cantos mais escuros e sem cores é um esporte que eu pratico desde garota.
O meu andar preferido sempre fora o último. Era onde morava a velha pianista, e eu adorava andar pelos corredores ao som de Chopin e Beethoven e tantos outros sons que saiam do piano da Senhora Dellas. Ela mesma me ensinou os nomes: Mozart, Bach, Vivaldi... Eram tantos e tinham nomes tão diferentes que eu me encantava só em pronunciá-los. Ela me confidenciou que conhecera todos eles, jamais poderia eu saber se era delírio ou a mais pura verdade. Preferia acreditar nas suas histórias porque elas eram a porta mágica para eu sair do casarão.
A Senhora Dellas morreu há uns anos atrás, o corpo foi mandado de volta pra Espanha, lugar de onde ela veio. Desde sua morte o corredor do último andar ficou mais frio e ainda mais vazio.
A melhor coisa sobre ele é que ninguém, além de mim, tem coragem de subir até lá. Até mesmo os meninos, tão cheios de coragem e sempre dispostos a enfrentarem fantasmas, ficaram amedrontados com os boatos que o espírito de Dellas ainda tocava o piano.
Eu fujo para lá sempre que ouço as batidas na porta do meu quarto. Depois da meia-noite as batidas são mais freqüentes e o destino que me fora traçado desde muito menina irrompe pela porta sem ao menos perguntar meu nome. É nessas horas que o som do piano sempre fica mais alto nos meus ouvidos para eu não ter que ouvir gritos, suspiros, urros e nem sentir o gosto de sal e o cheiro das colônias baratas.
Mesmo depois de tantos anos as pessoas ainda fogem do ultimo andar, para alguém subir lá é um sacrifício, as crianças são terminantemente proibidas pelos pais, ninguém mais aluga quartos por lá, e faxina por lá não se faz há tempos. E fui eu quem decidiu assim. Toco o velho piano da Senhora Dellas sempre que alguém se arrisca a subir até lá e essa foi a melhor maneira que encontrei de manter o lugar só meu. Afastei tudo e todos do único lugar que posso voltar a ser eu, e não “uma mulher de mil encantos”, como bem diz o anúncio. Construí o meu próprio paraíso no limbo e lá todos têm medo demais para entrar. Viver em um lugar assombrado é a melhor maneira de matar os próprios fantasmas.
O silêncio do meu mundo é o meu melhor amigo e eu estava, como sempre, conversando com o silêncio quando aqueles passos nos interromperam. Lá estava ele, um intruso no meu espaço. Não bateu a minha porta como os outros, este fez pior, entrou sem bater. Mas ao invés de tocar o piano para afugentar o invasor da minha fortaleza, esperei como uma combatente de guerra, pronta para atacar.

domingo, 28 de agosto de 2011

CAPÍTULO I - De carne

“Os sábios sempre dizem o quanto a vida é simples e os sabidos sempre vivem sem ouvir!” - meu pai não se cansava de me dizer tal frase e ela me acompanhou durante toda a minha infância.

Meu pai não era sábio, tampouco eu era sabido. Mas me tornei o exato alvo do ditado de meu pai, me tornei o que o dito pedia para que eu não fosse: um pintor anônimo que não sabe o segredo da vida, pois não vive.

Moro num quarto alugado de um velho casarão. Até o começo do ano meu pai e eu morávamos nessa pocilga, mas o velho faleceu de tuberculose e me deixou uma pensão mísera de ex-combatente de guerra, algumas telas, roupas sujas de tinta, uma moldura velha de ouro e a solidão.

Nesse casarão moram mais umas trinta famílias apertadas em minúsculos quartos como pencas de uvas amassadas aos pés dos sujos dos trabalhadores. Não sei ao certo dizer quantos eles são, não reparo muito neles só sei dizer que são de carne, tem cheiro de carne e nela se resumem. Eles gritam, xingam, sujam, se batem e se debatem, e só por isso sei que eles existem e estão perto, pois as paredes finas do quarto não abafam seus urros animais.

As pessoas não costumam gostar de mim também e assim permaneço de bem comigo mesmo, pois sei que só encontrarei em mim o sorriso que eu preciso ver, somente eu posso me fazer feliz, então eu sigo tristemente certo de que tanto faz a minha sociabilidade e aceitação.

Eu tenho um dom, que é a única herança genética de meu bondoso pai: crio na tela paisagens e pessoas que não existem. Não miro, não copio, não recrio, não imito a vida, apenas pinto o que sai da minha cabeça. Porem eu carrego uma maldição herdada de minha solidão: vivo dentro das histórias de vida dos personagens dos quadros e dou numerosos passeios pelas paisagens que invento.

Não gosto muito de sair do meu quarto. A cidade fede, suga, ensurdece, arranha e mata. Só saio para suprir uma real necessidade, ou seja, só para recompor meus sortimentos de comida e higiene.

Considero-me sexualmente ativo. Durmo com uma Madonna por dia. As mais belas mulheres que eu já vi se deitam comigo sem que eu lhes diga nada e fazem o que eu quero sem que eu tenha que lhes ordenar. E o melhor é que elas cheiram a vermelho, branco, preto, verde... e somem quando quero dormir. Mas eu me cansei dessa vida de solteiro e estou pintando aos poucos a mulher da minha vida. Aquela que vou colocar na velha moldura de ouro de meu pai e que viverá comigo para sempre...


Assim eu pensava. Assim eu era. Assim eu te diria. Assim permaneceria e morreria. Pintando a cova, as flores, as choradeiras e os meus veladores.

Eu estava certo de tudo: Da minha não-vida, da ilusão de completude, da minha solidão e do refúgio e companheirismo de meus quadros... até o dia em que me embebedei com os dois jarros de vinho que desenhei em um guardanapo sujo e saí pela madrugada fria, como as minhas paredes de gesso encarquilhadas, e encontrei, pelo casarão, Manuela... Manuela de carne, muita carne e que, encantadoramente, cheirava a tons de rosa e branco.