quarta-feira, 31 de agosto de 2011
CAPÍTULO IV- O invasor
segunda-feira, 29 de agosto de 2011
CAPÍTULO III - O borrão de tinta
Como eu queria ter levado comigo mais guardanapos com jarros de vinho desenhados para continuar sorvendo a embriaguês necessária para que eu me permitisse o fulgor do não-juízo!
Eu cambaleava pelos corredores às tontas, mas com uma destreza nunca antes explorada por mim. Eu sabia bem onde queria ir e ia sem querer saber. Nessa hora eu me senti o sabido do ditado do meu pai.
Era frio, mas por baixo de minha casaca eu suava feito um leitão, um pouco pela bebida e um pouco pela a aventura de não ser tão eu o quanto me resguardava.
O casarão era só uma fachada velha que abrigava miseráveis. Tenho a exata sensação de como seria viver na rua, ao relento, pois nas noites de inverno o frio trincava os copos de vidro e nas tardes de verão o calor fazia derreter o gesso e pingar nas testas dormentes.
Não havia ninguém àquela hora vagando pelo casarão. Não havia luz e não havia razão. Somente a minha inconsciência a guiar meus trôpegos pés pelo assoalho rangente. Subi até o último patamar da casa e encarei o corredor sombrio tentando alcançar a luz que surgia de uma fresta de porta entreaberta.
Parecia que eu era um desses espíritos clichês a trilhar o caminho da luz no túnel escuro da morte. Mas não encontrei Deus depois da luz. Encontrei uma moça frágil de uns vinte e seis anos debruçada a um piano velho. Suas melenas castanhas desenhavam o contorno de seu rosto e se precipitavam até seus seios robustos; seus olhos eram de susto e surpresa; sua boca era de não falar; suas mãos eram de dama e suas vestes de donzela e por alguns segundos imaginei-a comendo minhas vísceras e fustigando-me com aqueles raivosos olhos negros.
Realmente minhas vísceras se contorceram ao vê-la. Era como se eu já esperasse por esse encontro há muito tempo. Então ficamos os dois parados e em silêncio, ao que me pareceu, por duas ou três eternidades.
Até que ela abaixou os olhos que me fuzilavam e tocou uma musica ao piano. A cada nota tocada uma cor da mocinha se embaralhava, até que ao final ela era aos meus olhos apenas um borrão de branco, vermelho e cinza...
CAPÍTULO II - O último andar
domingo, 28 de agosto de 2011
CAPÍTULO I - De carne
“Os sábios sempre dizem o quanto a vida é simples e os sabidos sempre vivem sem ouvir!” - meu pai não se cansava de me dizer tal frase e ela me acompanhou durante toda a minha infância.
Meu pai não era sábio, tampouco eu era sabido. Mas me tornei o exato alvo do ditado de meu pai, me tornei o que o dito pedia para que eu não fosse: um pintor anônimo que não sabe o segredo da vida, pois não vive.
Moro num quarto alugado de um velho casarão. Até o começo do ano meu pai e eu morávamos nessa pocilga, mas o velho faleceu de tuberculose e me deixou uma pensão mísera de ex-combatente de guerra, algumas telas, roupas sujas de tinta, uma moldura velha de ouro e a solidão.
Nesse casarão moram mais umas trinta famílias apertadas em minúsculos quartos como pencas de uvas amassadas aos pés dos sujos dos trabalhadores. Não sei ao certo dizer quantos eles são, não reparo muito neles só sei dizer que são de carne, tem cheiro de carne e nela se resumem. Eles gritam, xingam, sujam, se batem e se debatem, e só por isso sei que eles existem e estão perto, pois as paredes finas do quarto não abafam seus urros animais.
As pessoas não costumam gostar de mim também e assim permaneço de bem comigo mesmo, pois sei que só encontrarei em mim o sorriso que eu preciso ver, somente eu posso me fazer feliz, então eu sigo tristemente certo de que tanto faz a minha sociabilidade e aceitação.
Eu tenho um dom, que é a única herança genética de meu bondoso pai: crio na tela paisagens e pessoas que não existem. Não miro, não copio, não recrio, não imito a vida, apenas pinto o que sai da minha cabeça. Porem eu carrego uma maldição herdada de minha solidão: vivo dentro das histórias de vida dos personagens dos quadros e dou numerosos passeios pelas paisagens que invento.
Não gosto muito de sair do meu quarto. A cidade fede, suga, ensurdece, arranha e mata. Só saio para suprir uma real necessidade, ou seja, só para recompor meus sortimentos de comida e higiene.
Considero-me sexualmente ativo. Durmo com uma Madonna por dia. As mais belas mulheres que eu já vi se deitam comigo sem que eu lhes diga nada e fazem o que eu quero sem que eu tenha que lhes ordenar. E o melhor é que elas cheiram a vermelho, branco, preto, verde... e somem quando quero dormir. Mas eu me cansei dessa vida de solteiro e estou pintando aos poucos a mulher da minha vida. Aquela que vou colocar na velha moldura de ouro de meu pai e que viverá comigo para sempre...
Assim eu pensava. Assim eu era. Assim eu te diria. Assim permaneceria e morreria. Pintando a cova, as flores, as choradeiras e os meus veladores.
Eu estava certo de tudo: Da minha não-vida, da ilusão de completude, da minha solidão e do refúgio e companheirismo de meus quadros... até o dia em que me embebedei com os dois jarros de vinho que desenhei em um guardanapo sujo e saí pela madrugada fria, como as minhas paredes de gesso encarquilhadas, e encontrei, pelo casarão, Manuela... Manuela de carne, muita carne e que, encantadoramente, cheirava a tons de rosa e branco.