segunda-feira, 26 de setembro de 2011

CAPÍTULO XIII - Quem é você?

“Ela veio”, pensei. Somente mãos tão perfeitas e delicadas quanto às dela seriam capazes de tirar esse som da madeira velha de minha porta.

Aos saltos fui até a porta e esperei que batesse novamente, mas a porta não voltou bater, porém quem quer que seja, e teimo que era ela, empurrou um bilhete por debaixo da porta.

Abri o bilhete, mas para o meu espanto, nele nada havia escrito, somente uma grande mancha de sangue nele se afigurava. E, como que decifrando os códigos artísticos daquela mancha de sangue, fruí da arte outorgada àquele borrão supostamente aleatório para poder entender do que se tratava.

Peguei o bilhete com o sangue ainda vivo e o cheirei, deixando-me sujar com o liquido viscoso que tingira aquele pedaço de papel. Nadei em veias e cachoeiras de sangue salpicavam em minha mente sem, de forma alguma, me trazerem qualquer mensagem ou o rosto de qualquer alguém.

Criando um súbito nojo me desfiz daquele papel grosseiro e sujo e fui correndo à minha bacia de lavanda para limpar meu rosto daquele sangue. Mas quando me abaixei para limpar o rosto refletido no fundo da bacia estava eu, com uma palavra estranha escrita em sangue em minha testa. Lia-se a palavra “ocuol” sem dificuldades.

Devia ser coisa desses visinhos de merda que tenho. Esses moleques durante um tempo me infernizaram a vida com suas brincadeirinhas. Sempre fui taxado de louco pelas almas errantes desse casarão. Porém, me ocorreu que, desta vez eu mesmo havia escrito em minha testa na loucura da minha fruição artística essa palavra.

Minha cabeça repentinamente começou a esquentar ao que parecia ser aos embalos dos acontecimentos, mas entender tudo o que eu estava vivendo ficou ainda mais difícil, quando percebi que a minha cabeça esquentava com o jorrar de meu sangue por uma ferida que se abriu na queda que tive ao desmaiar no quarto do piano e que aquele bilhete estava manchado com o meu próprio sangue.

Limpei o bilhete e li sua pequena mensagem em letra desenhada que dizia: “Quem é você?”.

“Não sei quem sou!“, constatei respondendo. E uma frustração tomou conta de mim, pois eu tinha certeza de que Manuela teria a chave para o meu mistério. Algo muito forte do meu passado apagado me ligava a ela.

“Não sei quem sou!”... “Só sei que és Manuela!”.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

CAPÍTULO XII- A moldura vazia

A sala novamente estava vazia de vida, sobraram apenas o frio e a penumbra do quarto. O homem espaçou mais uma vez pelos meus dedos, e com ele escaparam algumas peças de um passado que eu tenho embaralhado na minha mente.
Olhei o canto da sala e vi o quadro em amarelo que ele havia colocado lá, o campo dos girassóis. Eu não sabia como a minha imagem, ainda garota, havia sido colorida naquele quadro, assim como não sabia como o homem estava na minha lembrança, já que ela poderia ser apenas fruto da minha alucinação, mas aquele quadro era a prova de que ainda poderia haver algum resquício de realidade.
Com meu olhar perdido naquele quadro em amarelo fui me recordando de um amigo da senhora Dellas, que por algumas vezes apareceu por aqui. Lembro-me dele entrando pela porta sempre trazendo embrulhos para a velha pianista.

Era um homem grande, com uma cabeleira prateada, e barbas por fazer. Eu costumava associar sua figura a um velho capitão do mar, um pirata! Mas Dellas dizia que ele era um velho combatente de guerra, o que não deixava de ser instigante, para minha imaginação de menina.
Das poucas vezes que o vi no quarto da senhora Dellas, sempre se mostrou um homem gentil e faceto, arrancava boas risadas dela, e ao lado dele ela se tornava, aos meus olhos, uma mulher mais bonita apesar de sua idade. Ela me confidenciou uma vez que ele era o grande amor de sua vida. E com uma tristeza solitária no olhar ela me contou que nunca pôde tê-lo por inteiro.
A última vez que ele visitou Dellas trazia em suas mãos um embrulho em formato quadrado. Entrou sorrateiro e sem anuncio como sempre costumava fazer.
- Meu querido, faz tanto tempo que não tenho notícias suas. Quanta saudade!- correu Dellas aos seus braços, ignorando por completo que eu estava na sala tendo mais uma das aulas de piano.
O homem estava mais magro e abatido, parecia um velho marujo abatido por uma forte correnteza do mar.
- Estamos em tempos difíceis, os conflitos andam se intensificando pelas cidades, talvez não estejas mais em segurança por aqui. Ora, mas veja a menina!- ele me olhou no banco do piano, eu havia crescido um pouco, não era mais a menina que ele havia visto da ultima vez- Está se tornando uma bela moça!
Dellas continuou a ignorar-me, sua atenção era só dele.
- Meu querido, não se preocupe comigo, você sempre foi tão atencioso- derretia-se ela beijando as mãos brutas e cheias de marca do ex-combatente.
- Dellas, talvez eu não possa voltar tão cedo aqui! Mas eu vim até aqui hoje para lhe perdi que guarde em segurança algo de muito valor para mim, e que não está mais em segurança em minha posse.
Ele entregou a Dellas o embrulho. Ela desempacotou-o, e eu pude ver apenas de costas que se tratava de um quadro, e a moldura era a que eu havia encontrado no meu baú. E ao ver a imagem que estava nela, vi o semblante de Dellas, e ele revelava um misto de espanto e deslumbramento.
- Guarde como se guardasse suas jóias- ele ordenou- Um dia, quando tudo estiver mais calmo, eu voltarei para buscá-lo.

Um ano depois daquela visita Dellas partia, seus pertences foram levados para Espanha por um filho que veio buscar o corpo dela. Antes de sua chegada roubei alguns pertences para me recordar de minha professora de piano, atrás de seu armário estava a moldura que o Capitão pediu para ela guardar em segurança. Atrás do armário estava apenas a moldura, a tela havia desaparecido.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

CAPÍTULO XI - As batidas na porta

Aos poucos, fui me levantando do chão, catando os cacos de alma que me restavam enquanto ouvia os passos de Manuela se distanciarem e ao me restabelecer por completo, me senti ridículo vestido de mim mesmo e retornei ao meu quarto avesso àquela confiança que tive ao sair em busca das notas delicadas do piano.

Por que aquela moça me encanta tanto? Por que era para ela que eu ia sempre que agia por instinto? Eu não sabia responder a essas minhas questões, mas sabia que ela era importante para mim e que essas respostas estavam escondidas em mim em algum lugar secreto.

Eu queria viver! Pela primeira vez, eu queria viver o risco da realidade! Eu queria viver Manuela! Mas sempre que eu chagava perto dela eu apagava, como um bebe após a comida. E entorpecido por esses sentimentos, comecei a pintar um novo quadro.

O vicio da rotina de solidão ressurgira.

Eram os meus passos pelos corredores da casa, indo em direção ao quarto do piano e quando entrei no quarto não vi Manuela, mas sim, uma senhora a tocar ao piano aquela mesma musica que Manuela me dedicara.

Desesperei-me. Até mesmo nos meus devaneios eu não seria capaz de encontrar Manuela, mas a senhora apenas parou de tocar o piano e, com os olhos de acalmar, me apontou para um espelho que estava atrás de mim.

Virei-me para olhá-lo e tive outra surpresa. Não só Manuela era outra pessoa, como eu também não era eu. Eu era o meu pai.

Despertei do transe e à minha frente estava o quadro que eu tinha acabado de pintar: meu pai num espelho de corpo inteiro.

Nada daquele transe ou daquele quadro fazia sentido, até eu me recordar de algo que eu tinha apagado quando meu pai faleceu. Meu pai havia tido um curto relacionamento com a senhora Dellas que morava exatamente no quarto do piano. Mas no que isso dizia respeito a Manuela e a mim?

Meu coração batia acelerado com a eminência de um segredo mal apagado, prestes a ser desvendado, até que ele parou subitamente com alguém que batia suavemente à minha porta.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Capítulo X- O baú de sussurros



A canção que eu tocava ao piano ecoava por toda a casa e me levava a lembranças que eu não mais recordava. As canções que saem do piano têm vida própria, tem alma e coração. Estão vivas e são a única parte que está viva em mim. Eu só estou viva quando estou ao piano. E o curioso é que sentada ao piano eu sou apenas uma lenda, uma história contada pelos corredores, um medo no ouvido de cada morador da velha casa. E por mais surpreendente que possa parecer, é este o único momento em que eu vivo intensamente, a cada nota eu respiro, a cada nota eu amo, a cada início de uma nota eu renasço e ao fim dela eu morro e desvaneço em mil pedaços.
Não estou viva no meu verdadeiro quarto, lá eu não lembro nada do que vivi, tenho apenas fragmentos de um passado, relâmpagos de uma história, luzes sobre acontecimentos isolados. Nada para mim está vivo fora do quarto do piano.
 A mulher na qual me transformo todas as noites se perfuma sempre e se enfeita com brilhos, maquiagem e flores na expectativa de cumprir bem o seu papel e assim, garantir o seu sustento. Ela nada mais é do que cheiros e enfeites. Dela não saí calor e nem o gozo necessário. É morta, é fria, e indiferente a qualquer emoção. 
Sempre toquei o piano no intuito de afastar de mim aquelas criaturas que rondam a casa como almas a serem salvas no purgatório. Naquele momento eu tocava pela intenção oposta, eu queria que ele viesse até mim. Gritava em notas ao piano para que aquele pintor ouvisse meu chamado. Eu tocava para que cada nota adentrasse a porta de cada quarto, percorresse cada corredor e descessem as escadas invadindo os ouvidos de todos aqueles que estavam ali.
As lágrimas desciam no meu rosto sem que eu percebesse, e eu fazia aquilo como se fosse a última coisa que iria fazer.
E de repente a porta do quarto se irrompe!
Na minha frente está novamente o homem que eu havia visto na minha lembrança, deitado sobre os girassóis. Era ele! E dessa vez o a luz do sol invadia as frestas das janelas e eu podia vê-lo mais bonito que qualquer pintura, mais real que qualquer nota musical.

Tudo havia paralisado na minha frente. De que adiantava aquele encontro, de que adiantava aquela presença se o medo ainda me impedia de pronunciar qualquer palavra. Eu congelei diante dele, e havia me tornado novamente a mulher fria e apática que habita o meu quarto.
Diante do nosso silêncio de alguns segundos o homem caiu sobre o piano e tombou para o chão. Disparei meu corpo sobre o dele para trazê-lo de volta. Ele estava frio e suava, então percebi que seus lábios se moviam e ele balbuciou umas palavras, aproximei meu ouvido de sua boca, ela estava quente em comparação ao resto de seu corpo que permanecia frio. Ele sussurrou palavras soltas “sábios... dizem...vida simples...,sabidos...sem ouvir”
Não me parecia um devaneio seu, suas palavras me soavam familiar, e de tão familiar chegaram a me arrepiar a espinha.
Saí do quarto com o homem ainda desacordado. Fui buscar um pouco de água para acordá-lo, mas também estava indo atrás daquelas palavras. Minha intuição gritava aos meus ouvidos que eu conhecia aquelas palavras de algum lugar.
Fui até meu quarto, de número 406, abri a porta, arrastei a cama e encontrei o que procurava. Era um baú, onde guardava tudo que representava algum resquício de passado, abri o baú e comecei a cavar dentro dele, poeiras, trapos, alguns insetos, tudo voava pelos ares enquanto fazia minha busca pelo que eu obviamente já sabia o que era. E embaixo de uma camada de sedas lá estava o que eu buscava: uma moldura... Apenas uma moldura, sem pintura alguma, e atrás dela estava escrito a frase que me fez recordar as palavras do homem desmaiado no quarto do piano. Estava escrito a lápis: “Os sábios sempre dizem o quanto a vida é simples e os sabidos sempre vivem sem ouvir!”.
Voltei ao último andar, ele não estava mais lá.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

CAPÍTULO IX - O desmaio

Apesar de eu muito resistir e de ainda existir em mim uma forte vontade de me resignar ao não-ser, aos poucos fui derrotado pelos meus instintos.

Enquanto eu me digladiava internamente e perdia para o "eu" que não existia, nunca me senti tão coberto, tão vestido, tão imensamente pudico! E eu nunca tinha me sentido inconformado com isso antes! A novidade era a inconformidade no lugar da resignação. Eu começava a dar lugar dentro de mim para o rasgo do não.

Tirei a casaca que me cobria do pescoço ao tornozelo, como se retirasse um peso da minha mente tortuosa. Lavei as mãos com a lavanda que uso para retirar as machas de tinta e me despi das roupas sujas que usava. A cada peça de roupa que eu retirava era como se uma corrente a menos me prendesse a mim mesmo, era catarse após catarse. Uma libertação da minha vida cansada.

Ao som da sinfonia tocada por Manuela eu me despi em pelos. Ela tocava ao longe, baixinho, mas tocava ao fundo de minha alma como que por amplificação.

Banhei-me todo com a lavanda que restava e era como se eu estivesse me limpando do ranço da rotina e do ranho da minha solidão.

Pus uma roupa leve, que meu velho pai usava para sentar nos bancos das praças e saí do quarto. Dessa vez não me neguei ser visto, não me escondi. Na verdade, até me fiz ver. Andei forte como nunca tinha experimentado antes e minhas chinelas ressoavam pelos corredores. As mocinhas me cortejavam e os rapazes me cumprimentavam como se eu fosse uma figura comum àquele cancro social e, naquele momento, eu era, sim, uma pessoa comum.

A música não havia parado e eu estava sendo guiado, apesar de conhecer bem o caminho, pelo som delicado das teclas e das cordas. Subi as escadas, como se eu mesmo dançasse ao ritmo da música, com as pessoas a me olharem confusas entre a admiração de minha repentina coragem e o medo que sentiam da lenda que rondava o quarto do piano.

Há tempos meu pai me contou essa história do fantasma da velha que assombrava o quarto, mas eu sempre soube que não seria o fantasma capaz de tocar com tanta vida tais notas. E, eu vi, com meus próprios olhos que não era um fantasma, tampouco uma velha quem tocava o piano, era uma jovem donzela e lindamente viva!

Ao chegar ao corredor do último andar, a música ficou mais alta e me puxava para si como um imã. Eu estava sendo sugado para aquele quarto, como se a única via para se chegar ao paraíso fosse aquela.

Abri a porta e a música cessou, apesar de estar de dia, a escuridão tomava conta do quarto e eu não conseguia enxergar um palmo a frente do meu nariz. O breu era tanto que começou a tomar conta do meu ser. Nem mesmo das frestas das janelas se via raiar nenhum suspiro de luz.

Aos poucos começaram a salpicar vagalumes na escuridão e, quando uma mão me puxou para um canto, eu acordei, antes mesmo de uma voz me repetir a frase de meu pai.

Eu havia desmaiado ao entrar no quarto e desde o começo era a escuridão das pálpebras fechadas. Já acordado notei que, na verdade, o quarto estava bem iluminado e podia-se até ver a poeira na luz do sol que insidia pela janela e tocava o chão em alguns pontos.

Ainda deitado no chão, consegui ver os passos apressados de Manuela a sair do quarto, batendo a porta.

Outra vez eu apaguei em devaneios ao nos encontrarmos. Talvez eu não fosse capaz de visualizá-la, de uma só vez, por completo sem que ela se desfigurasse em borrões ou que eu desmaiasse na escuridão dos meus sonhos. Talvez ela fosse muito mais do que eu pudesse entender.

O que eu pude saber na hora foi que eu não era mais o mesmo maltrapilho pintor cheio de si e isso não tinha volta. Agora eu era um selvagem de roupas leves e lavanda a correr atrás de uma moça mais misteriosa do que eu.

Eu me tornei um homem!

Eu me tornei de carne!

domingo, 4 de setembro de 2011

CAPÍTULO VIII - As iniciais

Eu ainda estava atônita diante daquele quadro que mais parecia a lembrança que eu havia tido minutos antes. Era eu, só podia ser eu!  Mas quem mais sabia de mim no campo dos girassóis?


Era como se minha infância feliz tivesse voltado com a chegada daquele quadro. Tudo de maravilhoso que um dia eu vivi estava ali, naquele quadro, no meu local assombrado.


Olhei ao meu redor, em busca de algum resquício, de alguma pista sobre quem havia posto o quadro no quarto. Quando me aproximei do quadro pude sentir o cheiro da colônia do homem misterioso que surgiu no meu andar. Aquele cheiro me levou novamente para a minha lembrança no campo dos girassóis.


E novamente eu corria pelo campo, mas dessa vez eu tinha um objetivo, buscava por alguma coisa, eu sentia um cheiro forte de outra flor entre tantos girassóis. E corria em busca desse cheiro, de onde ele viria? Deparei-me novamente com a silueta do homem descansando sobre o campo, era dele que vinha o cheiro, era dele que exalava o cheiro de flor, eu havia encontrado o que procurava.


Era ele, o invasor da noite passada, o homem do guardanapo, ele estava na minha memória. E ele esteve aqui há pouco.


Saí do quarto depressa “talvez ele ainda esteja pelos corredores”, pensei. Corria por entre os corredores escuros e inóspitos, a cada alma que perambulava pelos corredores perguntava se haviam visto um homem caminhando com um quadro.


Quando cheguei à escada que me levaria ao segundo andar avisto o homem que procurava. Lá estava ele! Gritei “Espere um momento!”, na tentativa de conseguir alcançá-lo. Ele não parou, talvez não pudesse me ouvir. A subida de algumas dançarinas pela escada impediu que eu andasse em direção ao homem e na tentativa de me desvencilhar daquela confusão que se fez na escada, eu o perdi de vista.


Um buraco de desapontamento se abriu sob meus pés. Eu buscava agora uma tentativa de entender o quebra-cabeça do meu passado, aquele homem estivera lá, eu o vi, não podia ser uma alucinação. Ele pintou o meu passado.


Voltei como se arrastasse um véu de desesperança. Ao chegar novamente no quarto do piano, fui contemplar mais uma vez a minha janela para o passado. Reparei que no canto da pintura havia assinada em preto as iniciais V. S.


Agora o quarto do piano ganhou vida para mim e tudo adquiriu cores.


Fui tocar o piano, a música que eu toquei para ele na noite passada. Talvez assim ele ouvisse, e se atrevesse a subir até lá novamente. 

sábado, 3 de setembro de 2011

CAPÍTULO VII - Olhos de vagalume

Assim que terminei o quadro não suportei mais olhá-lo. Tinha que dar um fim a esse sacrilégio e a esse tormento que, cada vez mais, me cegava e que acabaria por pôr um fim a minha vida perfeita de outrora. Eu queria ser aquele mesmo “eu” de antes o “eu” estranho à todos, porém profundo conhecedor de sim próprio e se eu ficasse preso as imagens de Manuela eu nuca mais voltaria a pintar aos meus desejos os meus desejos.

Aquela noite, aqueles olhos, aquela música, aquele nome, tudo aquilo tinha que sumir da minha mente, para que eu pudesse me dedicar a minha verdadeira missão: pintar a derradeira mulher de minha vida.

Botei a tela numa moldura qualquer, que estava jogada atrás do armário, envolvi o quadro com alguns panos e saí sorrateiro, me esgueirando pelos cantos do casarão, para não ser notado. Aos poucos e vagarosamente fui chegando perto do quarto do piano sem trombar com nenhuma daquelas criaturas mortas viventes da casa.

Abri, com delicadeza, a porta, esperando não ter nenhuma surpresa sentada ao piano. O quarto estava vazio. Coloquei o quadro próximo ao piano e voltei, tão rato como havia ido, e felizmente não esbarrei em nenhum velho tísico ou cafetina podre ou operário sujo.

Já no quarto, peguei a tela borrada de tinta, que eu havia separado para pintar o quadro da mulher de minha vida, apaguei o nome Manuela de seu verso e passei três mãos de tinta branca por cima daquele horroroso borrão.

Quando terminei de apagar os resquícios daquela noite atípica, naquele encontro atípico com aquela moça atípica, senti um típico frio na alma, que me confortava e acalentava. Eu estava voltando ao meu normal. Então, peguei uma tinta preta, apaguei os meus olhos e dormi.

Era tudo preto como a tinta enquanto eu dormia. Até que salpicos de tinta verde começaram a surgir e desaparecer frente a minha pestana, com o tempo e a não sincronia do ascender-apagar dos salpicos verdes, percebi que se tratavam de vagalumes. Comecei a persegui-los até que uma mão me puxou para um canto da escuridão e soprou nos meus ouvidos a frase “Os sábios sempre dizem o quanto a vida é simples e os sabidos sempre vivem sem ouvir!”.

Com tinta branca avivei meus olhos. Acordei pingando suor e com a respiração descompassada, mas rapidamente me recompus e, com gotas de azul, pintei um ligeiro lacrimejar e terminei um quadro onde dois olhos se contradiziam e se complementavam: um estava fechado, tranqüilo, sonhando e o outro aberto, irritado e lacrimejando.

Ao terminar a tela um calor tomou posse de minha alma, como se eu houvesse bebido água fervente. Comecei a escutar ao longe a sublime música que Manuela havia tocado para mim ao se transformar em borrão de tinta e não era fruto da minha saudade ou uma simples alucinação. Era Manuela tocando. Era ela!

Eu estava perdido. Ela não sumiria mais de mim!

Na tela a minha frente, agora, eu via dois olhos fechados e descansados e tenho certeza de que sonhavam!

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

CAPÍTULO VI - O presente do passado


A luz do sol e o burburinho indo pelos corredores entraram pelas frestas das janelas e pela fechadura do meu quarto. Meu quarto ficava no terceiro andar do casarão e era propositalmente escuro, para que eu enxergasse pouco os rostos que entravam e saiam de lá todas as noites. Eu o decorei com velhas relíquias dos antigos donos da casa, nada muito valioso, tudo que poderia ter algum valor já foi vendido. A penteadeira ficava em frente a cama, e é onde eu conservava algumas jóias que roubei do quarto da Senhora Dellas antes de seu corpo e seus pertences voltarem para Espanha. Só sobrou o piano, porque não tiveram como levar, as partituras e as jóias que tomei, sem consentimento, de herança.

Acordei um pouco denorteada pela noite anterior. Caminhei até a mesinha onde tem sempre a postos um conhaque para começar bem o dia. Sentei-me e não conseguia esquecer a noite anterior e aquele homem a me encarar como se me conhecesse desde sempre.

Eu estava dividida por várias sensações, a curiosidade em saber quem ele era me consumia, a incerteza se o veria novamente me assombrava, a emoção ao lembrar de seu sorriso me paralisava. Eram tantos os sentimentos dentro de mim que eu quase podia ter a sensação física de que eles sairiam pela minha boca.

Peguei no bolso do meu vestido, que estava sobre a cama, o guardanapo com cheiro de vinho. Dois pares de jarro de vinho estavam desenhados sobre ele, eu não havia reparado nesse detalhe na noite de ontem, talvez pela pouca luz,.Eu só consegui sentir o cheiro do vinho, e ele ainda era forte. Aquele cheiro entrava no fundo da minha da minha alma e me arrepiava a espinha.

Reparei que o desenho dos jarros eram muito bem feitos, perfeitos! Devia ser à mão de um artista.

Na confusão de memórias da noite anterior, uma outra lembrança chegou até mim. Uma lembrança de um tempo atrás e que eu não me recordava a muito.

Lembrei-me do campo dos girassóis. Era um lugar que me levavam quando criança, e eu amava os girassóis. Era tudo tão amarelo e vivo e eu podia correr e ser livre de um jeito que nunca fui nesta casa. Os girassóis giravam todos ao meu redor, me seguiam para o lado que eu fosse e até se esqueciam de olhar para o sol.

Mas dessa vez na minha corrida veloz pelos campos do girassóis vi um homem deitado, descansando sobre o campo, não pude ver seu rosto apenas seu corpo repousado. Eu sabia que nunca antes, nos arquivos de minha memória, havia lembrado da imagem de um homem sobre os girassóis.

A barulheira pelos corredores se calou, saí do quarto e tomei a escada de serviço e subi até o último andar.

Uma vontade de tocar o piano havia me tomado por completo. Quando cheguei ao quarto do piano, o que vi ao lado dele me encheu de todo pavor que eu jamais pude sentir em toda minha vida.

Estava lá um quadro em uma bela moldura. E nele havia a imagem de uma garotinha a correr por um lindo, vivo e amarelo campo de girassóis.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

CAPÍTULO V - Manuela em amarelo

Esse era o nome dela. Só podia ser o nome dela. Nada parecia mais com ela do que o nome "Manuela".

Eu repeti esse nome, como um mantra, diversas vezes deitado em minha cama, enquanto todos os outros quadros do quarto me vigiavam e me puniam pela aventura da noite passada. Eu não podia falhar com a minha lealdade comigo e a minha coerência interna. Mas eu fiz. Falhei!

"Como eu pude sair de meu casulo para me tornar visível a outra pessoa?... Manuela! Como respirei o ar úmido do casarão com tanta vontade, como se tudo fosse um quadro meu? ... Manuela! Como? ... Manuela!".

Eu era agora um desajustado perante a cela da rotina. Não conseguia mais me ver igualmente recluso dentro da minha própria arte como antes. Ao menos não enquanto eu soletrava e cantava as sílabas desse nome "salvador".

Tentei me recordar o que se havia passado entre nós e o porquê de tudo ficar nebuloso quando ela começou a tocar o piano o que haveria acontecido entre a imagem dela a se desfigurar em borrão e eu a acordar em minha cama?

Forçar-me a lembrar de coisas apagadas da memória foi em vão, só me deu uma dor de cabeça que se curou ao repetir novamente o nome anotado no verso do quadro. Resolvi pintá-lo e em uma pequena tela, das que eu usava como rascunho, com tinta amarela, eu pintei o inebriante nome "Manuela".

Fechei bem os olhos, respirei fundo e quando os abri novamente eu estava deitado num campo de girassóis e uma menina corria em direção com o seu vestido amarelo, ao sol que se punha. A impressão que eu tinha era que os girassóis todos a miravam ao invés de mirarem o sol. E quando corri em direção a garota ela desapareceu.

Abri os olhos e lá estava eu, no meu quarto com uma tela nova: campo imenso de girassóis que fitavam o sol se por e uma menina de vestido amarelo a correr descalça.

O nome permanecia na minha mente, mas eu resolvi calar a voz dos meus pensamentos que insistiam em voar para aquele exato momento ao piano do último andar.

Manuela agora corria menina no campo de girassóis e ali, presa ao quadro, eu a entendia e a continha para sempre, como a todas as outras. E então, passou o meu devaneio e a minha ressaca desesperada de vontade de novos tragos. Voltei a ser o conformado pintor de vidas sem vida.