terça-feira, 6 de setembro de 2011

CAPÍTULO IX - O desmaio

Apesar de eu muito resistir e de ainda existir em mim uma forte vontade de me resignar ao não-ser, aos poucos fui derrotado pelos meus instintos.

Enquanto eu me digladiava internamente e perdia para o "eu" que não existia, nunca me senti tão coberto, tão vestido, tão imensamente pudico! E eu nunca tinha me sentido inconformado com isso antes! A novidade era a inconformidade no lugar da resignação. Eu começava a dar lugar dentro de mim para o rasgo do não.

Tirei a casaca que me cobria do pescoço ao tornozelo, como se retirasse um peso da minha mente tortuosa. Lavei as mãos com a lavanda que uso para retirar as machas de tinta e me despi das roupas sujas que usava. A cada peça de roupa que eu retirava era como se uma corrente a menos me prendesse a mim mesmo, era catarse após catarse. Uma libertação da minha vida cansada.

Ao som da sinfonia tocada por Manuela eu me despi em pelos. Ela tocava ao longe, baixinho, mas tocava ao fundo de minha alma como que por amplificação.

Banhei-me todo com a lavanda que restava e era como se eu estivesse me limpando do ranço da rotina e do ranho da minha solidão.

Pus uma roupa leve, que meu velho pai usava para sentar nos bancos das praças e saí do quarto. Dessa vez não me neguei ser visto, não me escondi. Na verdade, até me fiz ver. Andei forte como nunca tinha experimentado antes e minhas chinelas ressoavam pelos corredores. As mocinhas me cortejavam e os rapazes me cumprimentavam como se eu fosse uma figura comum àquele cancro social e, naquele momento, eu era, sim, uma pessoa comum.

A música não havia parado e eu estava sendo guiado, apesar de conhecer bem o caminho, pelo som delicado das teclas e das cordas. Subi as escadas, como se eu mesmo dançasse ao ritmo da música, com as pessoas a me olharem confusas entre a admiração de minha repentina coragem e o medo que sentiam da lenda que rondava o quarto do piano.

Há tempos meu pai me contou essa história do fantasma da velha que assombrava o quarto, mas eu sempre soube que não seria o fantasma capaz de tocar com tanta vida tais notas. E, eu vi, com meus próprios olhos que não era um fantasma, tampouco uma velha quem tocava o piano, era uma jovem donzela e lindamente viva!

Ao chegar ao corredor do último andar, a música ficou mais alta e me puxava para si como um imã. Eu estava sendo sugado para aquele quarto, como se a única via para se chegar ao paraíso fosse aquela.

Abri a porta e a música cessou, apesar de estar de dia, a escuridão tomava conta do quarto e eu não conseguia enxergar um palmo a frente do meu nariz. O breu era tanto que começou a tomar conta do meu ser. Nem mesmo das frestas das janelas se via raiar nenhum suspiro de luz.

Aos poucos começaram a salpicar vagalumes na escuridão e, quando uma mão me puxou para um canto, eu acordei, antes mesmo de uma voz me repetir a frase de meu pai.

Eu havia desmaiado ao entrar no quarto e desde o começo era a escuridão das pálpebras fechadas. Já acordado notei que, na verdade, o quarto estava bem iluminado e podia-se até ver a poeira na luz do sol que insidia pela janela e tocava o chão em alguns pontos.

Ainda deitado no chão, consegui ver os passos apressados de Manuela a sair do quarto, batendo a porta.

Outra vez eu apaguei em devaneios ao nos encontrarmos. Talvez eu não fosse capaz de visualizá-la, de uma só vez, por completo sem que ela se desfigurasse em borrões ou que eu desmaiasse na escuridão dos meus sonhos. Talvez ela fosse muito mais do que eu pudesse entender.

O que eu pude saber na hora foi que eu não era mais o mesmo maltrapilho pintor cheio de si e isso não tinha volta. Agora eu era um selvagem de roupas leves e lavanda a correr atrás de uma moça mais misteriosa do que eu.

Eu me tornei um homem!

Eu me tornei de carne!

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