domingo, 23 de outubro de 2011
CAPÍTULO XVI - A fotografia
domingo, 16 de outubro de 2011
CAPÍTULO XV - É você!
– Só sei que és Manuela! Só sei que és Manuela! - Eu gritava pelo quarto, sem que o nome "Manuela" me acalmasse, como sempre acontecia. Na verdade repetir aos berros essa frase me incomodava, mas era preciso berrar.
Aos poucos os berros, foram virando pranto e as minhas lágrimas iam embaçando, não só a minha vista, mas a minha mente.
Eu era um débil, já tinha consciência disso. Eu não estava no meu juízo perfeito, apesar de o meu juízo perfeito, já ser o anormal, o paranormal, o irreal. Mas ali na minha subjetividade surrealista e lúdica eu estaria clamo e não incomodaria os vizinhos com meus berros, como sempre eles me incomodam.
Anulei-me.
O sangue que escorria da minha cabeça se misturou às minhas lágrimas e tornou vermelha a minha visão. Era como andar no inferno!
– Inferno! – gritei, mas o choro não cessava. Eu atingira ali o estágio de choro acumulado que, por mais que eu me acalmasse e me ajuizasse, eu não tinha mais controle da queda d'água em meus olhos.
Sufocado pelo meu total descontrole, eu parti pela porta à fora, farejando um perfume doce qualquer que, por ventura, me surgisse ao olfato na tentativa de encontrar o quarto dela. Não foi preciso. No chão ela havia deixado cair contas de miçangas que me guiavam pelos corredores e pelas escadas. Não parei para prestar a atenção no caminho que fazia nem nos números dos quartos, apenas respirei fundo no instante em que as miçangas se acabaram, frente a uma das portas do casarão.
“Não vou desmaiar!”, a essa hora eu pensava como se fosse um mantra. Bati a porta uma vez e pouco depois lá estava ela. A me olhar com estranheza.
E antes que eu pudesse razoar qualquer palavra as frases saíram feitas de minha boca:
– Não sei quem sou, só sei que preciso de sua ajuda!
Ela me pegou pela mão e me pôs para dentro de seu quarto; deitou-me em sua cama – macia como se feita de nuvens, não como a minha cama com as palhas a saltarem para fora do colchão – e sem me dizer nada se pôs a limpar o ferimento em minha cabeça.
Uma sonolência, aos poucos, me tomava em seus braços, até que adormeci.
Sonhei que não havia cores no mundo e eu não tinha vontade alguma de pintar qualquer quadro... eu era apenas um som...
Acordei.
Ela ainda estava lá me olhando e folheando um álbum velho de fotos.
Eu não sabia o que esperar, minha experiência com pessoas era muito pequena... Ao que me recordava, somente com meu pai troquei mais do que cinco – menos do que dez – palavras!
Mas, quando pensei em começar um diálogo agradecendo por ela ter cuidado de mim com tal zelo, ela olhou incrédula para uma foto do álbum que via e mirou-me os seus fustigantes olhos com firmeza e disse em tom assustado:
– É você!
sábado, 1 de outubro de 2011
CAPÍTULO XIV- De volta ao segundo andar
Eu sabia o andar que o pintor deveria morar. A outra noite que o seguira ele foi até o segundo andar, então era lá que eu deveria retornar.
A lembrança do amante de Dellas, a moldura que ele confiou aos cuidados dela e a frase, escrita nela, sendo as mesmas palavras saídas da boca do pintor durante sua alucinação. Já não me restava dúvidas de que tudo estava relacionado. E este homem tão misterioso que há dias cruzava meu caminho, eu agora, mais do que nunca, queria saber quem era.
Fui até o segundo andar, bati em cada porta, todas se abriram para mim e seus respectivos moradores me perguntavam por que eu incomodava. Ao fim da minha busca incessante e, na esperança de a cada porta encontrar com o pintor, me deparei com pequenas gotas de sangue pelo chão do corredor, elas me levavam, como uma trilha, até a porta de número 215, era a única que eu ainda não havia batido. Só podia ser ele e deveria estar ferido pela queda no quarto.
Bati por algumas vezes, não obtive resposta. Mais uma vez ele deveria estar com medo de me encarar. Voltei ao meu quarto e procurei lápis e papel e escrevi para ele. Novamente no segundo andar empurrei o bilhete por baixo da porta. E voltei ao meu quarto, mais uma vez decepcionada.
Será que ele estava muito ferido? Teria desmaiado novamente? De repente uma aflição tomou conta de mim. A razão dele não ter me atendido não era simples receio, mas algo de mais grave podia ter acontecido a ele. A imagem dele desacordado no chão coberto de sangue me deixou em pânico. Ele poderia estar morto!
A porta do meu quarto bateu forte fazendo todo meu corpo tremer. Não hesitei nem por um segundo e a abri. Era ele. Com as mesmas roupas elegantes da noite anterior, porém sujas de sangue. Seu rosto também estava sujo e o ferimento ainda deveria estar aberto, em suas mãos trazia meu bilhete. Ele me disse apenas:
– Não sei quem sou só sei que preciso de sua ajuda!
segunda-feira, 26 de setembro de 2011
CAPÍTULO XIII - Quem é você?
“Ela veio”, pensei. Somente mãos tão perfeitas e delicadas quanto às dela seriam capazes de tirar esse som da madeira velha de minha porta.
Aos saltos fui até a porta e esperei que batesse novamente, mas a porta não voltou bater, porém quem quer que seja, e teimo que era ela, empurrou um bilhete por debaixo da porta.
Abri o bilhete, mas para o meu espanto, nele nada havia escrito, somente uma grande mancha de sangue nele se afigurava. E, como que decifrando os códigos artísticos daquela mancha de sangue, fruí da arte outorgada àquele borrão supostamente aleatório para poder entender do que se tratava.
Peguei o bilhete com o sangue ainda vivo e o cheirei, deixando-me sujar com o liquido viscoso que tingira aquele pedaço de papel. Nadei em veias e cachoeiras de sangue salpicavam em minha mente sem, de forma alguma, me trazerem qualquer mensagem ou o rosto de qualquer alguém.
Criando um súbito nojo me desfiz daquele papel grosseiro e sujo e fui correndo à minha bacia de lavanda para limpar meu rosto daquele sangue. Mas quando me abaixei para limpar o rosto refletido no fundo da bacia estava eu, com uma palavra estranha escrita em sangue em minha testa. Lia-se a palavra “ocuol” sem dificuldades.
Devia ser coisa desses visinhos de merda que tenho. Esses moleques durante um tempo me infernizaram a vida com suas brincadeirinhas. Sempre fui taxado de louco pelas almas errantes desse casarão. Porém, me ocorreu que, desta vez eu mesmo havia escrito em minha testa na loucura da minha fruição artística essa palavra.
Minha cabeça repentinamente começou a esquentar ao que parecia ser aos embalos dos acontecimentos, mas entender tudo o que eu estava vivendo ficou ainda mais difícil, quando percebi que a minha cabeça esquentava com o jorrar de meu sangue por uma ferida que se abriu na queda que tive ao desmaiar no quarto do piano e que aquele bilhete estava manchado com o meu próprio sangue.
Limpei o bilhete e li sua pequena mensagem em letra desenhada que dizia: “Quem é você?”.
“Não sei quem sou!“, constatei respondendo. E uma frustração tomou conta de mim, pois eu tinha certeza de que Manuela teria a chave para o meu mistério. Algo muito forte do meu passado apagado me ligava a ela.
“Não sei quem sou!”... “Só sei que és Manuela!”.
quarta-feira, 21 de setembro de 2011
CAPÍTULO XII- A moldura vazia
quarta-feira, 14 de setembro de 2011
CAPÍTULO XI - As batidas na porta
Aos poucos, fui me levantando do chão, catando os cacos de alma que me restavam enquanto ouvia os passos de Manuela se distanciarem e ao me restabelecer por completo, me senti ridículo vestido de mim mesmo e retornei ao meu quarto avesso àquela confiança que tive ao sair em busca das notas delicadas do piano.
Por que aquela moça me encanta tanto? Por que era para ela que eu ia sempre que agia por instinto? Eu não sabia responder a essas minhas questões, mas sabia que ela era importante para mim e que essas respostas estavam escondidas em mim em algum lugar secreto.
Eu queria viver! Pela primeira vez, eu queria viver o risco da realidade! Eu queria viver Manuela! Mas sempre que eu chagava perto dela eu apagava, como um bebe após a comida. E entorpecido por esses sentimentos, comecei a pintar um novo quadro.
O vicio da rotina de solidão ressurgira.
Eram os meus passos pelos corredores da casa, indo em direção ao quarto do piano e quando entrei no quarto não vi Manuela, mas sim, uma senhora a tocar ao piano aquela mesma musica que Manuela me dedicara.
Desesperei-me. Até mesmo nos meus devaneios eu não seria capaz de encontrar Manuela, mas a senhora apenas parou de tocar o piano e, com os olhos de acalmar, me apontou para um espelho que estava atrás de mim.
Virei-me para olhá-lo e tive outra surpresa. Não só Manuela era outra pessoa, como eu também não era eu. Eu era o meu pai.
Despertei do transe e à minha frente estava o quadro que eu tinha acabado de pintar: meu pai num espelho de corpo inteiro.
Nada daquele transe ou daquele quadro fazia sentido, até eu me recordar de algo que eu tinha apagado quando meu pai faleceu. Meu pai havia tido um curto relacionamento com a senhora Dellas que morava exatamente no quarto do piano. Mas no que isso dizia respeito a Manuela e a mim?
Meu coração batia acelerado com a eminência de um segredo mal apagado, prestes a ser desvendado, até que ele parou subitamente com alguém que batia suavemente à minha porta.
sexta-feira, 9 de setembro de 2011
Capítulo X- O baú de sussurros
terça-feira, 6 de setembro de 2011
CAPÍTULO IX - O desmaio
Apesar de eu muito resistir e de ainda existir em mim uma forte vontade de me resignar ao não-ser, aos poucos fui derrotado pelos meus instintos.
Enquanto eu me digladiava internamente e perdia para o "eu" que não existia, nunca me senti tão coberto, tão vestido, tão imensamente pudico! E eu nunca tinha me sentido inconformado com isso antes! A novidade era a inconformidade no lugar da resignação. Eu começava a dar lugar dentro de mim para o rasgo do não.
Tirei a casaca que me cobria do pescoço ao tornozelo, como se retirasse um peso da minha mente tortuosa. Lavei as mãos com a lavanda que uso para retirar as machas de tinta e me despi das roupas sujas que usava. A cada peça de roupa que eu retirava era como se uma corrente a menos me prendesse a mim mesmo, era catarse após catarse. Uma libertação da minha vida cansada.
Ao som da sinfonia tocada por Manuela eu me despi em pelos. Ela tocava ao longe, baixinho, mas tocava ao fundo de minha alma como que por amplificação.
Banhei-me todo com a lavanda que restava e era como se eu estivesse me limpando do ranço da rotina e do ranho da minha solidão.
Pus uma roupa leve, que meu velho pai usava para sentar nos bancos das praças e saí do quarto. Dessa vez não me neguei ser visto, não me escondi. Na verdade, até me fiz ver. Andei forte como nunca tinha experimentado antes e minhas chinelas ressoavam pelos corredores. As mocinhas me cortejavam e os rapazes me cumprimentavam como se eu fosse uma figura comum àquele cancro social e, naquele momento, eu era, sim, uma pessoa comum.
A música não havia parado e eu estava sendo guiado, apesar de conhecer bem o caminho, pelo som delicado das teclas e das cordas. Subi as escadas, como se eu mesmo dançasse ao ritmo da música, com as pessoas a me olharem confusas entre a admiração de minha repentina coragem e o medo que sentiam da lenda que rondava o quarto do piano.
Há tempos meu pai me contou essa história do fantasma da velha que assombrava o quarto, mas eu sempre soube que não seria o fantasma capaz de tocar com tanta vida tais notas. E, eu vi, com meus próprios olhos que não era um fantasma, tampouco uma velha quem tocava o piano, era uma jovem donzela e lindamente viva!
Ao chegar ao corredor do último andar, a música ficou mais alta e me puxava para si como um imã. Eu estava sendo sugado para aquele quarto, como se a única via para se chegar ao paraíso fosse aquela.
Abri a porta e a música cessou, apesar de estar de dia, a escuridão tomava conta do quarto e eu não conseguia enxergar um palmo a frente do meu nariz. O breu era tanto que começou a tomar conta do meu ser. Nem mesmo das frestas das janelas se via raiar nenhum suspiro de luz.
Aos poucos começaram a salpicar vagalumes na escuridão e, quando uma mão me puxou para um canto, eu acordei, antes mesmo de uma voz me repetir a frase de meu pai.
Eu havia desmaiado ao entrar no quarto e desde o começo era a escuridão das pálpebras fechadas. Já acordado notei que, na verdade, o quarto estava bem iluminado e podia-se até ver a poeira na luz do sol que insidia pela janela e tocava o chão em alguns pontos.
Ainda deitado no chão, consegui ver os passos apressados de Manuela a sair do quarto, batendo a porta.
Outra vez eu apaguei em devaneios ao nos encontrarmos. Talvez eu não fosse capaz de visualizá-la, de uma só vez, por completo sem que ela se desfigurasse em borrões ou que eu desmaiasse na escuridão dos meus sonhos. Talvez ela fosse muito mais do que eu pudesse entender.
O que eu pude saber na hora foi que eu não era mais o mesmo maltrapilho pintor cheio de si e isso não tinha volta. Agora eu era um selvagem de roupas leves e lavanda a correr atrás de uma moça mais misteriosa do que eu.
Eu me tornei um homem!
Eu me tornei de carne!
domingo, 4 de setembro de 2011
CAPÍTULO VIII - As iniciais
Era como se minha infância feliz tivesse voltado com a chegada daquele quadro. Tudo de maravilhoso que um dia eu vivi estava ali, naquele quadro, no meu local assombrado.
Olhei ao meu redor, em busca de algum resquício, de alguma pista sobre quem havia posto o quadro no quarto. Quando me aproximei do quadro pude sentir o cheiro da colônia do homem misterioso que surgiu no meu andar. Aquele cheiro me levou novamente para a minha lembrança no campo dos girassóis.
E novamente eu corria pelo campo, mas dessa vez eu tinha um objetivo, buscava por alguma coisa, eu sentia um cheiro forte de outra flor entre tantos girassóis. E corria em busca desse cheiro, de onde ele viria? Deparei-me novamente com a silueta do homem descansando sobre o campo, era dele que vinha o cheiro, era dele que exalava o cheiro de flor, eu havia encontrado o que procurava.
Era ele, o invasor da noite passada, o homem do guardanapo, ele estava na minha memória. E ele esteve aqui há pouco.
Saí do quarto depressa “talvez ele ainda esteja pelos corredores”, pensei. Corria por entre os corredores escuros e inóspitos, a cada alma que perambulava pelos corredores perguntava se haviam visto um homem caminhando com um quadro.
Quando cheguei à escada que me levaria ao segundo andar avisto o homem que procurava. Lá estava ele! Gritei “Espere um momento!”, na tentativa de conseguir alcançá-lo. Ele não parou, talvez não pudesse me ouvir. A subida de algumas dançarinas pela escada impediu que eu andasse em direção ao homem e na tentativa de me desvencilhar daquela confusão que se fez na escada, eu o perdi de vista.
Um buraco de desapontamento se abriu sob meus pés. Eu buscava agora uma tentativa de entender o quebra-cabeça do meu passado, aquele homem estivera lá, eu o vi, não podia ser uma alucinação. Ele pintou o meu passado.
Voltei como se arrastasse um véu de desesperança. Ao chegar novamente no quarto do piano, fui contemplar mais uma vez a minha janela para o passado. Reparei que no canto da pintura havia assinada em preto as iniciais V. S.
Agora o quarto do piano ganhou vida para mim e tudo adquiriu cores.
Fui tocar o piano, a música que eu toquei para ele na noite passada. Talvez assim ele ouvisse, e se atrevesse a subir até lá novamente.
sábado, 3 de setembro de 2011
CAPÍTULO VII - Olhos de vagalume
Assim que terminei o quadro não suportei mais olhá-lo. Tinha que dar um fim a esse sacrilégio e a esse tormento que, cada vez mais, me cegava e que acabaria por pôr um fim a minha vida perfeita de outrora. Eu queria ser aquele mesmo “eu” de antes o “eu” estranho à todos, porém profundo conhecedor de sim próprio e se eu ficasse preso as imagens de Manuela eu nuca mais voltaria a pintar aos meus desejos os meus desejos.
Aquela noite, aqueles olhos, aquela música, aquele nome, tudo aquilo tinha que sumir da minha mente, para que eu pudesse me dedicar a minha verdadeira missão: pintar a derradeira mulher de minha vida.
Botei a tela numa moldura qualquer, que estava jogada atrás do armário, envolvi o quadro com alguns panos e saí sorrateiro, me esgueirando pelos cantos do casarão, para não ser notado. Aos poucos e vagarosamente fui chegando perto do quarto do piano sem trombar com nenhuma daquelas criaturas mortas viventes da casa.
Abri, com delicadeza, a porta, esperando não ter nenhuma surpresa sentada ao piano. O quarto estava vazio. Coloquei o quadro próximo ao piano e voltei, tão rato como havia ido, e felizmente não esbarrei em nenhum velho tísico ou cafetina podre ou operário sujo.
Já no quarto, peguei a tela borrada de tinta, que eu havia separado para pintar o quadro da mulher de minha vida, apaguei o nome Manuela de seu verso e passei três mãos de tinta branca por cima daquele horroroso borrão.
Quando terminei de apagar os resquícios daquela noite atípica, naquele encontro atípico com aquela moça atípica, senti um típico frio na alma, que me confortava e acalentava. Eu estava voltando ao meu normal. Então, peguei uma tinta preta, apaguei os meus olhos e dormi.
Era tudo preto como a tinta enquanto eu dormia. Até que salpicos de tinta verde começaram a surgir e desaparecer frente a minha pestana, com o tempo e a não sincronia do ascender-apagar dos salpicos verdes, percebi que se tratavam de vagalumes. Comecei a persegui-los até que uma mão me puxou para um canto da escuridão e soprou nos meus ouvidos a frase “Os sábios sempre dizem o quanto a vida é simples e os sabidos sempre vivem sem ouvir!”.
Com tinta branca avivei meus olhos. Acordei pingando suor e com a respiração descompassada, mas rapidamente me recompus e, com gotas de azul, pintei um ligeiro lacrimejar e terminei um quadro onde dois olhos se contradiziam e se complementavam: um estava fechado, tranqüilo, sonhando e o outro aberto, irritado e lacrimejando.
Ao terminar a tela um calor tomou posse de minha alma, como se eu houvesse bebido água fervente. Comecei a escutar ao longe a sublime música que Manuela havia tocado para mim ao se transformar em borrão de tinta e não era fruto da minha saudade ou uma simples alucinação. Era Manuela tocando. Era ela!
Eu estava perdido. Ela não sumiria mais de mim!
Na tela a minha frente, agora, eu via dois olhos fechados e descansados e tenho certeza de que sonhavam!
sexta-feira, 2 de setembro de 2011
CAPÍTULO VI - O presente do passado
A luz do sol e o burburinho indo pelos corredores entraram pelas frestas das janelas e pela fechadura do meu quarto. Meu quarto ficava no terceiro andar do casarão e era propositalmente escuro, para que eu enxergasse pouco os rostos que entravam e saiam de lá todas as noites. Eu o decorei com velhas relíquias dos antigos donos da casa, nada muito valioso, tudo que poderia ter algum valor já foi vendido. A penteadeira ficava em frente a cama, e é onde eu conservava algumas jóias que roubei do quarto da Senhora Dellas antes de seu corpo e seus pertences voltarem para Espanha. Só sobrou o piano, porque não tiveram como levar, as partituras e as jóias que tomei, sem consentimento, de herança.
Acordei um pouco denorteada pela noite anterior. Caminhei até a mesinha onde tem sempre a postos um conhaque para começar bem o dia. Sentei-me e não conseguia esquecer a noite anterior e aquele homem a me encarar como se me conhecesse desde sempre.
Eu estava dividida por várias sensações, a curiosidade em saber quem ele era me consumia, a incerteza se o veria novamente me assombrava, a emoção ao lembrar de seu sorriso me paralisava. Eram tantos os sentimentos dentro de mim que eu quase podia ter a sensação física de que eles sairiam pela minha boca.
Peguei no bolso do meu vestido, que estava sobre a cama, o guardanapo com cheiro de vinho. Dois pares de jarro de vinho estavam desenhados sobre ele, eu não havia reparado nesse detalhe na noite de ontem, talvez pela pouca luz,.Eu só consegui sentir o cheiro do vinho, e ele ainda era forte. Aquele cheiro entrava no fundo da minha da minha alma e me arrepiava a espinha.
Reparei que o desenho dos jarros eram muito bem feitos, perfeitos! Devia ser à mão de um artista.
Na confusão de memórias da noite anterior, uma outra lembrança chegou até mim. Uma lembrança de um tempo atrás e que eu não me recordava a muito.
Lembrei-me do campo dos girassóis. Era um lugar que me levavam quando criança, e eu amava os girassóis. Era tudo tão amarelo e vivo e eu podia correr e ser livre de um jeito que nunca fui nesta casa. Os girassóis giravam todos ao meu redor, me seguiam para o lado que eu fosse e até se esqueciam de olhar para o sol.
Mas dessa vez na minha corrida veloz pelos campos do girassóis vi um homem deitado, descansando sobre o campo, não pude ver seu rosto apenas seu corpo repousado. Eu sabia que nunca antes, nos arquivos de minha memória, havia lembrado da imagem de um homem sobre os girassóis.
A barulheira pelos corredores se calou, saí do quarto e tomei a escada de serviço e subi até o último andar.
Uma vontade de tocar o piano havia me tomado por completo. Quando cheguei ao quarto do piano, o que vi ao lado dele me encheu de todo pavor que eu jamais pude sentir em toda minha vida.
Estava lá um quadro em uma bela moldura. E nele havia a imagem de uma garotinha a correr por um lindo, vivo e amarelo campo de girassóis.
quinta-feira, 1 de setembro de 2011
CAPÍTULO V - Manuela em amarelo
Esse era o nome dela. Só podia ser o nome dela. Nada parecia mais com ela do que o nome "Manuela".
Eu repeti esse nome, como um mantra, diversas vezes deitado em minha cama, enquanto todos os outros quadros do quarto me vigiavam e me puniam pela aventura da noite passada. Eu não podia falhar com a minha lealdade comigo e a minha coerência interna. Mas eu fiz. Falhei!
"Como eu pude sair de meu casulo para me tornar visível a outra pessoa?... Manuela! Como respirei o ar úmido do casarão com tanta vontade, como se tudo fosse um quadro meu? ... Manuela! Como? ... Manuela!".
Eu era agora um desajustado perante a cela da rotina. Não conseguia mais me ver igualmente recluso dentro da minha própria arte como antes. Ao menos não enquanto eu soletrava e cantava as sílabas desse nome "salvador".
Tentei me recordar o que se havia passado entre nós e o porquê de tudo ficar nebuloso quando ela começou a tocar o piano o que haveria acontecido entre a imagem dela a se desfigurar em borrão e eu a acordar em minha cama?
Forçar-me a lembrar de coisas apagadas da memória foi em vão, só me deu uma dor de cabeça que se curou ao repetir novamente o nome anotado no verso do quadro. Resolvi pintá-lo e em uma pequena tela, das que eu usava como rascunho, com tinta amarela, eu pintei o inebriante nome "Manuela".
Fechei bem os olhos, respirei fundo e quando os abri novamente eu estava deitado num campo de girassóis e uma menina corria em direção com o seu vestido amarelo, ao sol que se punha. A impressão que eu tinha era que os girassóis todos a miravam ao invés de mirarem o sol. E quando corri em direção a garota ela desapareceu.
Abri os olhos e lá estava eu, no meu quarto com uma tela nova: campo imenso de girassóis que fitavam o sol se por e uma menina de vestido amarelo a correr descalça.
O nome permanecia na minha mente, mas eu resolvi calar a voz dos meus pensamentos que insistiam em voar para aquele exato momento ao piano do último andar.
Manuela agora corria menina no campo de girassóis e ali, presa ao quadro, eu a entendia e a continha para sempre, como a todas as outras. E então, passou o meu devaneio e a minha ressaca desesperada de vontade de novos tragos. Voltei a ser o conformado pintor de vidas sem vida.
quarta-feira, 31 de agosto de 2011
CAPÍTULO IV- O invasor
segunda-feira, 29 de agosto de 2011
CAPÍTULO III - O borrão de tinta
Como eu queria ter levado comigo mais guardanapos com jarros de vinho desenhados para continuar sorvendo a embriaguês necessária para que eu me permitisse o fulgor do não-juízo!
Eu cambaleava pelos corredores às tontas, mas com uma destreza nunca antes explorada por mim. Eu sabia bem onde queria ir e ia sem querer saber. Nessa hora eu me senti o sabido do ditado do meu pai.
Era frio, mas por baixo de minha casaca eu suava feito um leitão, um pouco pela bebida e um pouco pela a aventura de não ser tão eu o quanto me resguardava.
O casarão era só uma fachada velha que abrigava miseráveis. Tenho a exata sensação de como seria viver na rua, ao relento, pois nas noites de inverno o frio trincava os copos de vidro e nas tardes de verão o calor fazia derreter o gesso e pingar nas testas dormentes.
Não havia ninguém àquela hora vagando pelo casarão. Não havia luz e não havia razão. Somente a minha inconsciência a guiar meus trôpegos pés pelo assoalho rangente. Subi até o último patamar da casa e encarei o corredor sombrio tentando alcançar a luz que surgia de uma fresta de porta entreaberta.
Parecia que eu era um desses espíritos clichês a trilhar o caminho da luz no túnel escuro da morte. Mas não encontrei Deus depois da luz. Encontrei uma moça frágil de uns vinte e seis anos debruçada a um piano velho. Suas melenas castanhas desenhavam o contorno de seu rosto e se precipitavam até seus seios robustos; seus olhos eram de susto e surpresa; sua boca era de não falar; suas mãos eram de dama e suas vestes de donzela e por alguns segundos imaginei-a comendo minhas vísceras e fustigando-me com aqueles raivosos olhos negros.
Realmente minhas vísceras se contorceram ao vê-la. Era como se eu já esperasse por esse encontro há muito tempo. Então ficamos os dois parados e em silêncio, ao que me pareceu, por duas ou três eternidades.
Até que ela abaixou os olhos que me fuzilavam e tocou uma musica ao piano. A cada nota tocada uma cor da mocinha se embaralhava, até que ao final ela era aos meus olhos apenas um borrão de branco, vermelho e cinza...
CAPÍTULO II - O último andar
domingo, 28 de agosto de 2011
CAPÍTULO I - De carne
“Os sábios sempre dizem o quanto a vida é simples e os sabidos sempre vivem sem ouvir!” - meu pai não se cansava de me dizer tal frase e ela me acompanhou durante toda a minha infância.
Meu pai não era sábio, tampouco eu era sabido. Mas me tornei o exato alvo do ditado de meu pai, me tornei o que o dito pedia para que eu não fosse: um pintor anônimo que não sabe o segredo da vida, pois não vive.
Moro num quarto alugado de um velho casarão. Até o começo do ano meu pai e eu morávamos nessa pocilga, mas o velho faleceu de tuberculose e me deixou uma pensão mísera de ex-combatente de guerra, algumas telas, roupas sujas de tinta, uma moldura velha de ouro e a solidão.
Nesse casarão moram mais umas trinta famílias apertadas em minúsculos quartos como pencas de uvas amassadas aos pés dos sujos dos trabalhadores. Não sei ao certo dizer quantos eles são, não reparo muito neles só sei dizer que são de carne, tem cheiro de carne e nela se resumem. Eles gritam, xingam, sujam, se batem e se debatem, e só por isso sei que eles existem e estão perto, pois as paredes finas do quarto não abafam seus urros animais.
As pessoas não costumam gostar de mim também e assim permaneço de bem comigo mesmo, pois sei que só encontrarei em mim o sorriso que eu preciso ver, somente eu posso me fazer feliz, então eu sigo tristemente certo de que tanto faz a minha sociabilidade e aceitação.
Eu tenho um dom, que é a única herança genética de meu bondoso pai: crio na tela paisagens e pessoas que não existem. Não miro, não copio, não recrio, não imito a vida, apenas pinto o que sai da minha cabeça. Porem eu carrego uma maldição herdada de minha solidão: vivo dentro das histórias de vida dos personagens dos quadros e dou numerosos passeios pelas paisagens que invento.
Não gosto muito de sair do meu quarto. A cidade fede, suga, ensurdece, arranha e mata. Só saio para suprir uma real necessidade, ou seja, só para recompor meus sortimentos de comida e higiene.
Considero-me sexualmente ativo. Durmo com uma Madonna por dia. As mais belas mulheres que eu já vi se deitam comigo sem que eu lhes diga nada e fazem o que eu quero sem que eu tenha que lhes ordenar. E o melhor é que elas cheiram a vermelho, branco, preto, verde... e somem quando quero dormir. Mas eu me cansei dessa vida de solteiro e estou pintando aos poucos a mulher da minha vida. Aquela que vou colocar na velha moldura de ouro de meu pai e que viverá comigo para sempre...
Assim eu pensava. Assim eu era. Assim eu te diria. Assim permaneceria e morreria. Pintando a cova, as flores, as choradeiras e os meus veladores.
Eu estava certo de tudo: Da minha não-vida, da ilusão de completude, da minha solidão e do refúgio e companheirismo de meus quadros... até o dia em que me embebedei com os dois jarros de vinho que desenhei em um guardanapo sujo e saí pela madrugada fria, como as minhas paredes de gesso encarquilhadas, e encontrei, pelo casarão, Manuela... Manuela de carne, muita carne e que, encantadoramente, cheirava a tons de rosa e branco.