domingo, 23 de outubro de 2011

CAPÍTULO XVI - A fotografia

Era ele!

Em frente a minha porta e precisando de meus cuidados. Repousei-o sobre minha cama, e enquanto cuidava do ferimento em sua cabeça torcia para que não desmaiasse mais uma vez. Mas o coitado estava desorientado demais. Abria e fechava os olhos em busca da minha salvação, como se pedisse socorro e também, consentimento para, enfim,  descansar.

Fechei seus olhos com minhas mãos para ele descansar. E contemplei seu rosto por alguns instantes. Sua face agora estava limpa, eu havia removido o sangue que tornava seu rosto desconhecido. Ele era bonito como eu pude observar desde a primeira vez, e esta era a primeira vez que eu estava tão pero dele, como quis estar desde o principio. Podia sentir o cheiro de sua pele, não era o cheiro inebriante de sua colônia, e nem de tinta, mas um cheiro de vida! Pude sentir seu suor, seu corpo quente, sua respiração, cada poro de seu corpo agora estava próximo a mim. Controlei minhas mãos e o meu instinto.

Porém algo me chamou a atenção. Em seu pescoço pude ver uma cicatriz. A mesma cicatriz que havia visto há tempos atrás. Uma cicatriz grande profunda.

Imediatamente me afastei do rapaz. Tive medo. Não podia ser o que eu acabara de constatar.

Procurei um velho álbum de fotografias. Folheei até as páginas que queria. E lá estava a foto que eu havia me lembrado. Na fotografia estava eu, ainda muito menina, sentada em um banco de madeira e o cenário de trás era o lindo campo de girassóis que eu costumava ir quando criança. Ao meu lado, no banco de madeira, estava um menino, um pouco mais velho do que eu. Era este menino que tinha uma cicatriz no pescoço, o menino que também passeava no campo dos girassóis.

De repente tudo fez muito sentindo. A imagem que veio em minha mente, a uns dias atrás, de eu correndo pelos campos dos girassóis e um homem deitado sobre o campo, e que eu não sabia se era lembrança ou alucinação se encaixou perfeitamente.

Era ele! E não era alucinação minha. Ele era o menino da cicatriz!

Ele acordou. Eu disse, olhando para ele ainda espantada:

- É você!

Ele ainda parecia um pouco desnorteado, mas eu insisti:

-Era você, no campo dos girassóis! Por isso fez a pintura e colocou no quarto do piano. Porque você desapareceu por tanto tempo?


domingo, 16 de outubro de 2011

CAPÍTULO XV - É você!

– Só sei que és Manuela! Só sei que és Manuela! - Eu gritava pelo quarto, sem que o nome "Manuela" me acalmasse, como sempre acontecia. Na verdade repetir aos berros essa frase me incomodava, mas era preciso berrar.

Aos poucos os berros, foram virando pranto e as minhas lágrimas iam embaçando, não só a minha vista, mas a minha mente.

Eu era um débil, já tinha consciência disso. Eu não estava no meu juízo perfeito, apesar de o meu juízo perfeito, já ser o anormal, o paranormal, o irreal. Mas ali na minha subjetividade surrealista e lúdica eu estaria clamo e não incomodaria os vizinhos com meus berros, como sempre eles me incomodam.

Anulei-me.

O sangue que escorria da minha cabeça se misturou às minhas lágrimas e tornou vermelha a minha visão. Era como andar no inferno!

– Inferno! – gritei, mas o choro não cessava. Eu atingira ali o estágio de choro acumulado que, por mais que eu me acalmasse e me ajuizasse, eu não tinha mais controle da queda d'água em meus olhos.

Sufocado pelo meu total descontrole, eu parti pela porta à fora, farejando um perfume doce qualquer que, por ventura, me surgisse ao olfato na tentativa de encontrar o quarto dela. Não foi preciso. No chão ela havia deixado cair contas de miçangas que me guiavam pelos corredores e pelas escadas. Não parei para prestar a atenção no caminho que fazia nem nos números dos quartos, apenas respirei fundo no instante em que as miçangas se acabaram, frente a uma das portas do casarão.

“Não vou desmaiar!”, a essa hora eu pensava como se fosse um mantra. Bati a porta uma vez e pouco depois lá estava ela. A me olhar com estranheza.

E antes que eu pudesse razoar qualquer palavra as frases saíram feitas de minha boca:

­– Não sei quem sou, só sei que preciso de sua ajuda!

Ela me pegou pela mão e me pôs para dentro de seu quarto; deitou-me em sua cama – macia como se feita de nuvens, não como a minha cama com as palhas a saltarem para fora do colchão – e sem me dizer nada se pôs a limpar o ferimento em minha cabeça.

Uma sonolência, aos poucos, me tomava em seus braços, até que adormeci.

Sonhei que não havia cores no mundo e eu não tinha vontade alguma de pintar qualquer quadro... eu era apenas um som...

Acordei.

Ela ainda estava lá me olhando e folheando um álbum velho de fotos.

Eu não sabia o que esperar, minha experiência com pessoas era muito pequena... Ao que me recordava, somente com meu pai troquei mais do que cinco – menos do que dez – palavras!

Mas, quando pensei em começar um diálogo agradecendo por ela ter cuidado de mim com tal zelo, ela olhou incrédula para uma foto do álbum que via e mirou-me os seus fustigantes olhos com firmeza e disse em tom assustado:

– É você!

sábado, 1 de outubro de 2011

CAPÍTULO XIV- De volta ao segundo andar

Eu sabia o andar que o pintor deveria morar. A outra noite que o seguira ele foi até o segundo andar, então era lá que eu deveria retornar.

A lembrança do amante de Dellas, a moldura que ele confiou aos cuidados dela e a frase, escrita nela, sendo as mesmas palavras saídas da boca do pintor durante sua alucinação. Já não me restava dúvidas de que tudo estava relacionado. E este homem tão misterioso que há dias cruzava meu caminho, eu agora, mais do que nunca, queria saber quem era.

Fui até o segundo andar, bati em cada porta, todas se abriram para mim e seus respectivos moradores me perguntavam por que eu incomodava. Ao fim da minha busca incessante e, na esperança de a cada porta encontrar com o pintor, me deparei com pequenas gotas de sangue pelo chão do corredor, elas me levavam, como uma trilha, até a porta de número 215, era a única que eu ainda não havia batido. Só podia ser ele e deveria estar ferido pela queda no quarto.

Bati por algumas vezes, não obtive resposta. Mais uma vez ele deveria estar com medo de me encarar. Voltei ao meu quarto e procurei lápis e papel e escrevi para ele. Novamente no segundo andar empurrei o bilhete por baixo da porta. E voltei ao meu quarto, mais uma vez decepcionada.

Será que ele estava muito ferido? Teria desmaiado novamente? De repente uma aflição tomou conta de mim. A razão dele não ter me atendido não era simples receio, mas algo de mais grave podia ter acontecido a ele. A imagem dele desacordado no chão coberto de sangue me deixou em pânico. Ele poderia estar morto!

A porta do meu quarto bateu forte fazendo todo meu corpo tremer. Não hesitei nem por um segundo e a abri. Era ele. Com as mesmas roupas elegantes da noite anterior, porém sujas de sangue. Seu rosto também estava sujo e o ferimento ainda deveria estar aberto, em suas mãos trazia meu bilhete. Ele me disse apenas:

– Não sei quem sou só sei que preciso de sua ajuda!

segunda-feira, 26 de setembro de 2011

CAPÍTULO XIII - Quem é você?

“Ela veio”, pensei. Somente mãos tão perfeitas e delicadas quanto às dela seriam capazes de tirar esse som da madeira velha de minha porta.

Aos saltos fui até a porta e esperei que batesse novamente, mas a porta não voltou bater, porém quem quer que seja, e teimo que era ela, empurrou um bilhete por debaixo da porta.

Abri o bilhete, mas para o meu espanto, nele nada havia escrito, somente uma grande mancha de sangue nele se afigurava. E, como que decifrando os códigos artísticos daquela mancha de sangue, fruí da arte outorgada àquele borrão supostamente aleatório para poder entender do que se tratava.

Peguei o bilhete com o sangue ainda vivo e o cheirei, deixando-me sujar com o liquido viscoso que tingira aquele pedaço de papel. Nadei em veias e cachoeiras de sangue salpicavam em minha mente sem, de forma alguma, me trazerem qualquer mensagem ou o rosto de qualquer alguém.

Criando um súbito nojo me desfiz daquele papel grosseiro e sujo e fui correndo à minha bacia de lavanda para limpar meu rosto daquele sangue. Mas quando me abaixei para limpar o rosto refletido no fundo da bacia estava eu, com uma palavra estranha escrita em sangue em minha testa. Lia-se a palavra “ocuol” sem dificuldades.

Devia ser coisa desses visinhos de merda que tenho. Esses moleques durante um tempo me infernizaram a vida com suas brincadeirinhas. Sempre fui taxado de louco pelas almas errantes desse casarão. Porém, me ocorreu que, desta vez eu mesmo havia escrito em minha testa na loucura da minha fruição artística essa palavra.

Minha cabeça repentinamente começou a esquentar ao que parecia ser aos embalos dos acontecimentos, mas entender tudo o que eu estava vivendo ficou ainda mais difícil, quando percebi que a minha cabeça esquentava com o jorrar de meu sangue por uma ferida que se abriu na queda que tive ao desmaiar no quarto do piano e que aquele bilhete estava manchado com o meu próprio sangue.

Limpei o bilhete e li sua pequena mensagem em letra desenhada que dizia: “Quem é você?”.

“Não sei quem sou!“, constatei respondendo. E uma frustração tomou conta de mim, pois eu tinha certeza de que Manuela teria a chave para o meu mistério. Algo muito forte do meu passado apagado me ligava a ela.

“Não sei quem sou!”... “Só sei que és Manuela!”.

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

CAPÍTULO XII- A moldura vazia

A sala novamente estava vazia de vida, sobraram apenas o frio e a penumbra do quarto. O homem espaçou mais uma vez pelos meus dedos, e com ele escaparam algumas peças de um passado que eu tenho embaralhado na minha mente.
Olhei o canto da sala e vi o quadro em amarelo que ele havia colocado lá, o campo dos girassóis. Eu não sabia como a minha imagem, ainda garota, havia sido colorida naquele quadro, assim como não sabia como o homem estava na minha lembrança, já que ela poderia ser apenas fruto da minha alucinação, mas aquele quadro era a prova de que ainda poderia haver algum resquício de realidade.
Com meu olhar perdido naquele quadro em amarelo fui me recordando de um amigo da senhora Dellas, que por algumas vezes apareceu por aqui. Lembro-me dele entrando pela porta sempre trazendo embrulhos para a velha pianista.

Era um homem grande, com uma cabeleira prateada, e barbas por fazer. Eu costumava associar sua figura a um velho capitão do mar, um pirata! Mas Dellas dizia que ele era um velho combatente de guerra, o que não deixava de ser instigante, para minha imaginação de menina.
Das poucas vezes que o vi no quarto da senhora Dellas, sempre se mostrou um homem gentil e faceto, arrancava boas risadas dela, e ao lado dele ela se tornava, aos meus olhos, uma mulher mais bonita apesar de sua idade. Ela me confidenciou uma vez que ele era o grande amor de sua vida. E com uma tristeza solitária no olhar ela me contou que nunca pôde tê-lo por inteiro.
A última vez que ele visitou Dellas trazia em suas mãos um embrulho em formato quadrado. Entrou sorrateiro e sem anuncio como sempre costumava fazer.
- Meu querido, faz tanto tempo que não tenho notícias suas. Quanta saudade!- correu Dellas aos seus braços, ignorando por completo que eu estava na sala tendo mais uma das aulas de piano.
O homem estava mais magro e abatido, parecia um velho marujo abatido por uma forte correnteza do mar.
- Estamos em tempos difíceis, os conflitos andam se intensificando pelas cidades, talvez não estejas mais em segurança por aqui. Ora, mas veja a menina!- ele me olhou no banco do piano, eu havia crescido um pouco, não era mais a menina que ele havia visto da ultima vez- Está se tornando uma bela moça!
Dellas continuou a ignorar-me, sua atenção era só dele.
- Meu querido, não se preocupe comigo, você sempre foi tão atencioso- derretia-se ela beijando as mãos brutas e cheias de marca do ex-combatente.
- Dellas, talvez eu não possa voltar tão cedo aqui! Mas eu vim até aqui hoje para lhe perdi que guarde em segurança algo de muito valor para mim, e que não está mais em segurança em minha posse.
Ele entregou a Dellas o embrulho. Ela desempacotou-o, e eu pude ver apenas de costas que se tratava de um quadro, e a moldura era a que eu havia encontrado no meu baú. E ao ver a imagem que estava nela, vi o semblante de Dellas, e ele revelava um misto de espanto e deslumbramento.
- Guarde como se guardasse suas jóias- ele ordenou- Um dia, quando tudo estiver mais calmo, eu voltarei para buscá-lo.

Um ano depois daquela visita Dellas partia, seus pertences foram levados para Espanha por um filho que veio buscar o corpo dela. Antes de sua chegada roubei alguns pertences para me recordar de minha professora de piano, atrás de seu armário estava a moldura que o Capitão pediu para ela guardar em segurança. Atrás do armário estava apenas a moldura, a tela havia desaparecido.

quarta-feira, 14 de setembro de 2011

CAPÍTULO XI - As batidas na porta

Aos poucos, fui me levantando do chão, catando os cacos de alma que me restavam enquanto ouvia os passos de Manuela se distanciarem e ao me restabelecer por completo, me senti ridículo vestido de mim mesmo e retornei ao meu quarto avesso àquela confiança que tive ao sair em busca das notas delicadas do piano.

Por que aquela moça me encanta tanto? Por que era para ela que eu ia sempre que agia por instinto? Eu não sabia responder a essas minhas questões, mas sabia que ela era importante para mim e que essas respostas estavam escondidas em mim em algum lugar secreto.

Eu queria viver! Pela primeira vez, eu queria viver o risco da realidade! Eu queria viver Manuela! Mas sempre que eu chagava perto dela eu apagava, como um bebe após a comida. E entorpecido por esses sentimentos, comecei a pintar um novo quadro.

O vicio da rotina de solidão ressurgira.

Eram os meus passos pelos corredores da casa, indo em direção ao quarto do piano e quando entrei no quarto não vi Manuela, mas sim, uma senhora a tocar ao piano aquela mesma musica que Manuela me dedicara.

Desesperei-me. Até mesmo nos meus devaneios eu não seria capaz de encontrar Manuela, mas a senhora apenas parou de tocar o piano e, com os olhos de acalmar, me apontou para um espelho que estava atrás de mim.

Virei-me para olhá-lo e tive outra surpresa. Não só Manuela era outra pessoa, como eu também não era eu. Eu era o meu pai.

Despertei do transe e à minha frente estava o quadro que eu tinha acabado de pintar: meu pai num espelho de corpo inteiro.

Nada daquele transe ou daquele quadro fazia sentido, até eu me recordar de algo que eu tinha apagado quando meu pai faleceu. Meu pai havia tido um curto relacionamento com a senhora Dellas que morava exatamente no quarto do piano. Mas no que isso dizia respeito a Manuela e a mim?

Meu coração batia acelerado com a eminência de um segredo mal apagado, prestes a ser desvendado, até que ele parou subitamente com alguém que batia suavemente à minha porta.

sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Capítulo X- O baú de sussurros



A canção que eu tocava ao piano ecoava por toda a casa e me levava a lembranças que eu não mais recordava. As canções que saem do piano têm vida própria, tem alma e coração. Estão vivas e são a única parte que está viva em mim. Eu só estou viva quando estou ao piano. E o curioso é que sentada ao piano eu sou apenas uma lenda, uma história contada pelos corredores, um medo no ouvido de cada morador da velha casa. E por mais surpreendente que possa parecer, é este o único momento em que eu vivo intensamente, a cada nota eu respiro, a cada nota eu amo, a cada início de uma nota eu renasço e ao fim dela eu morro e desvaneço em mil pedaços.
Não estou viva no meu verdadeiro quarto, lá eu não lembro nada do que vivi, tenho apenas fragmentos de um passado, relâmpagos de uma história, luzes sobre acontecimentos isolados. Nada para mim está vivo fora do quarto do piano.
 A mulher na qual me transformo todas as noites se perfuma sempre e se enfeita com brilhos, maquiagem e flores na expectativa de cumprir bem o seu papel e assim, garantir o seu sustento. Ela nada mais é do que cheiros e enfeites. Dela não saí calor e nem o gozo necessário. É morta, é fria, e indiferente a qualquer emoção. 
Sempre toquei o piano no intuito de afastar de mim aquelas criaturas que rondam a casa como almas a serem salvas no purgatório. Naquele momento eu tocava pela intenção oposta, eu queria que ele viesse até mim. Gritava em notas ao piano para que aquele pintor ouvisse meu chamado. Eu tocava para que cada nota adentrasse a porta de cada quarto, percorresse cada corredor e descessem as escadas invadindo os ouvidos de todos aqueles que estavam ali.
As lágrimas desciam no meu rosto sem que eu percebesse, e eu fazia aquilo como se fosse a última coisa que iria fazer.
E de repente a porta do quarto se irrompe!
Na minha frente está novamente o homem que eu havia visto na minha lembrança, deitado sobre os girassóis. Era ele! E dessa vez o a luz do sol invadia as frestas das janelas e eu podia vê-lo mais bonito que qualquer pintura, mais real que qualquer nota musical.

Tudo havia paralisado na minha frente. De que adiantava aquele encontro, de que adiantava aquela presença se o medo ainda me impedia de pronunciar qualquer palavra. Eu congelei diante dele, e havia me tornado novamente a mulher fria e apática que habita o meu quarto.
Diante do nosso silêncio de alguns segundos o homem caiu sobre o piano e tombou para o chão. Disparei meu corpo sobre o dele para trazê-lo de volta. Ele estava frio e suava, então percebi que seus lábios se moviam e ele balbuciou umas palavras, aproximei meu ouvido de sua boca, ela estava quente em comparação ao resto de seu corpo que permanecia frio. Ele sussurrou palavras soltas “sábios... dizem...vida simples...,sabidos...sem ouvir”
Não me parecia um devaneio seu, suas palavras me soavam familiar, e de tão familiar chegaram a me arrepiar a espinha.
Saí do quarto com o homem ainda desacordado. Fui buscar um pouco de água para acordá-lo, mas também estava indo atrás daquelas palavras. Minha intuição gritava aos meus ouvidos que eu conhecia aquelas palavras de algum lugar.
Fui até meu quarto, de número 406, abri a porta, arrastei a cama e encontrei o que procurava. Era um baú, onde guardava tudo que representava algum resquício de passado, abri o baú e comecei a cavar dentro dele, poeiras, trapos, alguns insetos, tudo voava pelos ares enquanto fazia minha busca pelo que eu obviamente já sabia o que era. E embaixo de uma camada de sedas lá estava o que eu buscava: uma moldura... Apenas uma moldura, sem pintura alguma, e atrás dela estava escrito a frase que me fez recordar as palavras do homem desmaiado no quarto do piano. Estava escrito a lápis: “Os sábios sempre dizem o quanto a vida é simples e os sabidos sempre vivem sem ouvir!”.
Voltei ao último andar, ele não estava mais lá.

terça-feira, 6 de setembro de 2011

CAPÍTULO IX - O desmaio

Apesar de eu muito resistir e de ainda existir em mim uma forte vontade de me resignar ao não-ser, aos poucos fui derrotado pelos meus instintos.

Enquanto eu me digladiava internamente e perdia para o "eu" que não existia, nunca me senti tão coberto, tão vestido, tão imensamente pudico! E eu nunca tinha me sentido inconformado com isso antes! A novidade era a inconformidade no lugar da resignação. Eu começava a dar lugar dentro de mim para o rasgo do não.

Tirei a casaca que me cobria do pescoço ao tornozelo, como se retirasse um peso da minha mente tortuosa. Lavei as mãos com a lavanda que uso para retirar as machas de tinta e me despi das roupas sujas que usava. A cada peça de roupa que eu retirava era como se uma corrente a menos me prendesse a mim mesmo, era catarse após catarse. Uma libertação da minha vida cansada.

Ao som da sinfonia tocada por Manuela eu me despi em pelos. Ela tocava ao longe, baixinho, mas tocava ao fundo de minha alma como que por amplificação.

Banhei-me todo com a lavanda que restava e era como se eu estivesse me limpando do ranço da rotina e do ranho da minha solidão.

Pus uma roupa leve, que meu velho pai usava para sentar nos bancos das praças e saí do quarto. Dessa vez não me neguei ser visto, não me escondi. Na verdade, até me fiz ver. Andei forte como nunca tinha experimentado antes e minhas chinelas ressoavam pelos corredores. As mocinhas me cortejavam e os rapazes me cumprimentavam como se eu fosse uma figura comum àquele cancro social e, naquele momento, eu era, sim, uma pessoa comum.

A música não havia parado e eu estava sendo guiado, apesar de conhecer bem o caminho, pelo som delicado das teclas e das cordas. Subi as escadas, como se eu mesmo dançasse ao ritmo da música, com as pessoas a me olharem confusas entre a admiração de minha repentina coragem e o medo que sentiam da lenda que rondava o quarto do piano.

Há tempos meu pai me contou essa história do fantasma da velha que assombrava o quarto, mas eu sempre soube que não seria o fantasma capaz de tocar com tanta vida tais notas. E, eu vi, com meus próprios olhos que não era um fantasma, tampouco uma velha quem tocava o piano, era uma jovem donzela e lindamente viva!

Ao chegar ao corredor do último andar, a música ficou mais alta e me puxava para si como um imã. Eu estava sendo sugado para aquele quarto, como se a única via para se chegar ao paraíso fosse aquela.

Abri a porta e a música cessou, apesar de estar de dia, a escuridão tomava conta do quarto e eu não conseguia enxergar um palmo a frente do meu nariz. O breu era tanto que começou a tomar conta do meu ser. Nem mesmo das frestas das janelas se via raiar nenhum suspiro de luz.

Aos poucos começaram a salpicar vagalumes na escuridão e, quando uma mão me puxou para um canto, eu acordei, antes mesmo de uma voz me repetir a frase de meu pai.

Eu havia desmaiado ao entrar no quarto e desde o começo era a escuridão das pálpebras fechadas. Já acordado notei que, na verdade, o quarto estava bem iluminado e podia-se até ver a poeira na luz do sol que insidia pela janela e tocava o chão em alguns pontos.

Ainda deitado no chão, consegui ver os passos apressados de Manuela a sair do quarto, batendo a porta.

Outra vez eu apaguei em devaneios ao nos encontrarmos. Talvez eu não fosse capaz de visualizá-la, de uma só vez, por completo sem que ela se desfigurasse em borrões ou que eu desmaiasse na escuridão dos meus sonhos. Talvez ela fosse muito mais do que eu pudesse entender.

O que eu pude saber na hora foi que eu não era mais o mesmo maltrapilho pintor cheio de si e isso não tinha volta. Agora eu era um selvagem de roupas leves e lavanda a correr atrás de uma moça mais misteriosa do que eu.

Eu me tornei um homem!

Eu me tornei de carne!

domingo, 4 de setembro de 2011

CAPÍTULO VIII - As iniciais

Eu ainda estava atônita diante daquele quadro que mais parecia a lembrança que eu havia tido minutos antes. Era eu, só podia ser eu!  Mas quem mais sabia de mim no campo dos girassóis?


Era como se minha infância feliz tivesse voltado com a chegada daquele quadro. Tudo de maravilhoso que um dia eu vivi estava ali, naquele quadro, no meu local assombrado.


Olhei ao meu redor, em busca de algum resquício, de alguma pista sobre quem havia posto o quadro no quarto. Quando me aproximei do quadro pude sentir o cheiro da colônia do homem misterioso que surgiu no meu andar. Aquele cheiro me levou novamente para a minha lembrança no campo dos girassóis.


E novamente eu corria pelo campo, mas dessa vez eu tinha um objetivo, buscava por alguma coisa, eu sentia um cheiro forte de outra flor entre tantos girassóis. E corria em busca desse cheiro, de onde ele viria? Deparei-me novamente com a silueta do homem descansando sobre o campo, era dele que vinha o cheiro, era dele que exalava o cheiro de flor, eu havia encontrado o que procurava.


Era ele, o invasor da noite passada, o homem do guardanapo, ele estava na minha memória. E ele esteve aqui há pouco.


Saí do quarto depressa “talvez ele ainda esteja pelos corredores”, pensei. Corria por entre os corredores escuros e inóspitos, a cada alma que perambulava pelos corredores perguntava se haviam visto um homem caminhando com um quadro.


Quando cheguei à escada que me levaria ao segundo andar avisto o homem que procurava. Lá estava ele! Gritei “Espere um momento!”, na tentativa de conseguir alcançá-lo. Ele não parou, talvez não pudesse me ouvir. A subida de algumas dançarinas pela escada impediu que eu andasse em direção ao homem e na tentativa de me desvencilhar daquela confusão que se fez na escada, eu o perdi de vista.


Um buraco de desapontamento se abriu sob meus pés. Eu buscava agora uma tentativa de entender o quebra-cabeça do meu passado, aquele homem estivera lá, eu o vi, não podia ser uma alucinação. Ele pintou o meu passado.


Voltei como se arrastasse um véu de desesperança. Ao chegar novamente no quarto do piano, fui contemplar mais uma vez a minha janela para o passado. Reparei que no canto da pintura havia assinada em preto as iniciais V. S.


Agora o quarto do piano ganhou vida para mim e tudo adquiriu cores.


Fui tocar o piano, a música que eu toquei para ele na noite passada. Talvez assim ele ouvisse, e se atrevesse a subir até lá novamente. 

sábado, 3 de setembro de 2011

CAPÍTULO VII - Olhos de vagalume

Assim que terminei o quadro não suportei mais olhá-lo. Tinha que dar um fim a esse sacrilégio e a esse tormento que, cada vez mais, me cegava e que acabaria por pôr um fim a minha vida perfeita de outrora. Eu queria ser aquele mesmo “eu” de antes o “eu” estranho à todos, porém profundo conhecedor de sim próprio e se eu ficasse preso as imagens de Manuela eu nuca mais voltaria a pintar aos meus desejos os meus desejos.

Aquela noite, aqueles olhos, aquela música, aquele nome, tudo aquilo tinha que sumir da minha mente, para que eu pudesse me dedicar a minha verdadeira missão: pintar a derradeira mulher de minha vida.

Botei a tela numa moldura qualquer, que estava jogada atrás do armário, envolvi o quadro com alguns panos e saí sorrateiro, me esgueirando pelos cantos do casarão, para não ser notado. Aos poucos e vagarosamente fui chegando perto do quarto do piano sem trombar com nenhuma daquelas criaturas mortas viventes da casa.

Abri, com delicadeza, a porta, esperando não ter nenhuma surpresa sentada ao piano. O quarto estava vazio. Coloquei o quadro próximo ao piano e voltei, tão rato como havia ido, e felizmente não esbarrei em nenhum velho tísico ou cafetina podre ou operário sujo.

Já no quarto, peguei a tela borrada de tinta, que eu havia separado para pintar o quadro da mulher de minha vida, apaguei o nome Manuela de seu verso e passei três mãos de tinta branca por cima daquele horroroso borrão.

Quando terminei de apagar os resquícios daquela noite atípica, naquele encontro atípico com aquela moça atípica, senti um típico frio na alma, que me confortava e acalentava. Eu estava voltando ao meu normal. Então, peguei uma tinta preta, apaguei os meus olhos e dormi.

Era tudo preto como a tinta enquanto eu dormia. Até que salpicos de tinta verde começaram a surgir e desaparecer frente a minha pestana, com o tempo e a não sincronia do ascender-apagar dos salpicos verdes, percebi que se tratavam de vagalumes. Comecei a persegui-los até que uma mão me puxou para um canto da escuridão e soprou nos meus ouvidos a frase “Os sábios sempre dizem o quanto a vida é simples e os sabidos sempre vivem sem ouvir!”.

Com tinta branca avivei meus olhos. Acordei pingando suor e com a respiração descompassada, mas rapidamente me recompus e, com gotas de azul, pintei um ligeiro lacrimejar e terminei um quadro onde dois olhos se contradiziam e se complementavam: um estava fechado, tranqüilo, sonhando e o outro aberto, irritado e lacrimejando.

Ao terminar a tela um calor tomou posse de minha alma, como se eu houvesse bebido água fervente. Comecei a escutar ao longe a sublime música que Manuela havia tocado para mim ao se transformar em borrão de tinta e não era fruto da minha saudade ou uma simples alucinação. Era Manuela tocando. Era ela!

Eu estava perdido. Ela não sumiria mais de mim!

Na tela a minha frente, agora, eu via dois olhos fechados e descansados e tenho certeza de que sonhavam!

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

CAPÍTULO VI - O presente do passado


A luz do sol e o burburinho indo pelos corredores entraram pelas frestas das janelas e pela fechadura do meu quarto. Meu quarto ficava no terceiro andar do casarão e era propositalmente escuro, para que eu enxergasse pouco os rostos que entravam e saiam de lá todas as noites. Eu o decorei com velhas relíquias dos antigos donos da casa, nada muito valioso, tudo que poderia ter algum valor já foi vendido. A penteadeira ficava em frente a cama, e é onde eu conservava algumas jóias que roubei do quarto da Senhora Dellas antes de seu corpo e seus pertences voltarem para Espanha. Só sobrou o piano, porque não tiveram como levar, as partituras e as jóias que tomei, sem consentimento, de herança.

Acordei um pouco denorteada pela noite anterior. Caminhei até a mesinha onde tem sempre a postos um conhaque para começar bem o dia. Sentei-me e não conseguia esquecer a noite anterior e aquele homem a me encarar como se me conhecesse desde sempre.

Eu estava dividida por várias sensações, a curiosidade em saber quem ele era me consumia, a incerteza se o veria novamente me assombrava, a emoção ao lembrar de seu sorriso me paralisava. Eram tantos os sentimentos dentro de mim que eu quase podia ter a sensação física de que eles sairiam pela minha boca.

Peguei no bolso do meu vestido, que estava sobre a cama, o guardanapo com cheiro de vinho. Dois pares de jarro de vinho estavam desenhados sobre ele, eu não havia reparado nesse detalhe na noite de ontem, talvez pela pouca luz,.Eu só consegui sentir o cheiro do vinho, e ele ainda era forte. Aquele cheiro entrava no fundo da minha da minha alma e me arrepiava a espinha.

Reparei que o desenho dos jarros eram muito bem feitos, perfeitos! Devia ser à mão de um artista.

Na confusão de memórias da noite anterior, uma outra lembrança chegou até mim. Uma lembrança de um tempo atrás e que eu não me recordava a muito.

Lembrei-me do campo dos girassóis. Era um lugar que me levavam quando criança, e eu amava os girassóis. Era tudo tão amarelo e vivo e eu podia correr e ser livre de um jeito que nunca fui nesta casa. Os girassóis giravam todos ao meu redor, me seguiam para o lado que eu fosse e até se esqueciam de olhar para o sol.

Mas dessa vez na minha corrida veloz pelos campos do girassóis vi um homem deitado, descansando sobre o campo, não pude ver seu rosto apenas seu corpo repousado. Eu sabia que nunca antes, nos arquivos de minha memória, havia lembrado da imagem de um homem sobre os girassóis.

A barulheira pelos corredores se calou, saí do quarto e tomei a escada de serviço e subi até o último andar.

Uma vontade de tocar o piano havia me tomado por completo. Quando cheguei ao quarto do piano, o que vi ao lado dele me encheu de todo pavor que eu jamais pude sentir em toda minha vida.

Estava lá um quadro em uma bela moldura. E nele havia a imagem de uma garotinha a correr por um lindo, vivo e amarelo campo de girassóis.

quinta-feira, 1 de setembro de 2011

CAPÍTULO V - Manuela em amarelo

Esse era o nome dela. Só podia ser o nome dela. Nada parecia mais com ela do que o nome "Manuela".

Eu repeti esse nome, como um mantra, diversas vezes deitado em minha cama, enquanto todos os outros quadros do quarto me vigiavam e me puniam pela aventura da noite passada. Eu não podia falhar com a minha lealdade comigo e a minha coerência interna. Mas eu fiz. Falhei!

"Como eu pude sair de meu casulo para me tornar visível a outra pessoa?... Manuela! Como respirei o ar úmido do casarão com tanta vontade, como se tudo fosse um quadro meu? ... Manuela! Como? ... Manuela!".

Eu era agora um desajustado perante a cela da rotina. Não conseguia mais me ver igualmente recluso dentro da minha própria arte como antes. Ao menos não enquanto eu soletrava e cantava as sílabas desse nome "salvador".

Tentei me recordar o que se havia passado entre nós e o porquê de tudo ficar nebuloso quando ela começou a tocar o piano o que haveria acontecido entre a imagem dela a se desfigurar em borrão e eu a acordar em minha cama?

Forçar-me a lembrar de coisas apagadas da memória foi em vão, só me deu uma dor de cabeça que se curou ao repetir novamente o nome anotado no verso do quadro. Resolvi pintá-lo e em uma pequena tela, das que eu usava como rascunho, com tinta amarela, eu pintei o inebriante nome "Manuela".

Fechei bem os olhos, respirei fundo e quando os abri novamente eu estava deitado num campo de girassóis e uma menina corria em direção com o seu vestido amarelo, ao sol que se punha. A impressão que eu tinha era que os girassóis todos a miravam ao invés de mirarem o sol. E quando corri em direção a garota ela desapareceu.

Abri os olhos e lá estava eu, no meu quarto com uma tela nova: campo imenso de girassóis que fitavam o sol se por e uma menina de vestido amarelo a correr descalça.

O nome permanecia na minha mente, mas eu resolvi calar a voz dos meus pensamentos que insistiam em voar para aquele exato momento ao piano do último andar.

Manuela agora corria menina no campo de girassóis e ali, presa ao quadro, eu a entendia e a continha para sempre, como a todas as outras. E então, passou o meu devaneio e a minha ressaca desesperada de vontade de novos tragos. Voltei a ser o conformado pintor de vidas sem vida.

quarta-feira, 31 de agosto de 2011

CAPÍTULO IV- O invasor

De onde ele veio? Com certeza devia ser um novo inquilino, ou não se arriscaria a subir até aqui, não teria coragem de desafiar os mistérios narrados pelos moradores do casarão sobre este andar. Eu estava lá, sobre o meu piano, na iminência de tocá-lo e assim fazer aquele homem desaparecer do meu mundo. Fitava-o curiosa e pronta para atacá-lo com as notas mais tristes e fúnebres que poderiam sair do meu instrumento.

Da pouca luz que havia sobre nós naquele cômodo pude ver que suas roupas eram surradas e maltrapilhas, decoradas com muitas cores, pelas manchas de dedos limpados nela. Seria ele um artista? O curioso é que ele não tinha o cheiro da boêmia a qual eu estava acostumada. Cheirava a tinta fresca e uma lavanda que não conseguia me recordar de que flor pertencia. Não era truculento e nem grosseiro, com certeza não era daqui. Não podia pertencer a esta casa e a tudo que ela abriga.

Eu, sim, pertencia a este lugar, e carregava comigo toda a impureza que esse ambiente guardava. Ele nada parecia com as paredes frias e sem vida dessa casa, e nem com os corredores escuros e solitários.

Eu não podia confiar, eu não devia trair e deixar que adentrassem o meu local seguro, que roubassem tudo que eu construí, melhor ainda, que eu inventei. Ele parecia tão perdido, balbuciou algo que não pude compreender, e ao invés de me atacar como eu estava pronta para fazer, pude ver, sob a única luz que incidia na sala do piano, que me lançava um sorriso, como há muito tempo eu não via. E como há muito tempo eu não retribuía.

Os sorrisos são brindes à um bom pagador, custam um preço mais elevado, essa foi a maneira como sempre fui ensinada. Dar um sorriso somente mediante pagamento. Nem me lembro mais a última vez que pude sorrir por vontade. Talvez tenha sido na época que o casarão ainda era cenário das grandes festas e sobrava muita comida para todos. Tínhamos naquela época motivos de sobra para sorrir, depois daqueles tempos o sorriso passou a ser artigo de luxo e raro. Mas pela primeira vez em muito tempo um ímpeto leve, sereno, veio a ponto de explodir nos meus lábios como que por encantamento. Eu retribui o sorriso para ele.

Mas, pela pouca luz sobre mim, ele não viu.

Por alguns segundos eu havia esquecido completamente o porquê eu estava sobre o meu piano, minha reação feroz em afugentá-lo passou e toquei uma música suave e bela. As notas e a melodia me levaram a tocar com uma felicidade nunca antes sentida, e ao mesmo tempo um pavor se apossava de mim. Ao fim da última nota, eu estava novamente sozinha no último andar, o homem de vestes com manchas de tinta havia se apagado dos meus olhos.

Ao aproximar o olhar do chão onde ele estava postado vi um guardanapo sujo jogado e ao cheirá-lo senti um forte cheiro de vinho tinto.

segunda-feira, 29 de agosto de 2011

CAPÍTULO III - O borrão de tinta

Como eu queria ter levado comigo mais guardanapos com jarros de vinho desenhados para continuar sorvendo a embriaguês necessária para que eu me permitisse o fulgor do não-juízo!

Eu cambaleava pelos corredores às tontas, mas com uma destreza nunca antes explorada por mim. Eu sabia bem onde queria ir e ia sem querer saber. Nessa hora eu me senti o sabido do ditado do meu pai.

Era frio, mas por baixo de minha casaca eu suava feito um leitão, um pouco pela bebida e um pouco pela a aventura de não ser tão eu o quanto me resguardava.

O casarão era só uma fachada velha que abrigava miseráveis. Tenho a exata sensação de como seria viver na rua, ao relento, pois nas noites de inverno o frio trincava os copos de vidro e nas tardes de verão o calor fazia derreter o gesso e pingar nas testas dormentes.

Não havia ninguém àquela hora vagando pelo casarão. Não havia luz e não havia razão. Somente a minha inconsciência a guiar meus trôpegos pés pelo assoalho rangente. Subi até o último patamar da casa e encarei o corredor sombrio tentando alcançar a luz que surgia de uma fresta de porta entreaberta.

Parecia que eu era um desses espíritos clichês a trilhar o caminho da luz no túnel escuro da morte. Mas não encontrei Deus depois da luz. Encontrei uma moça frágil de uns vinte e seis anos debruçada a um piano velho. Suas melenas castanhas desenhavam o contorno de seu rosto e se precipitavam até seus seios robustos; seus olhos eram de susto e surpresa; sua boca era de não falar; suas mãos eram de dama e suas vestes de donzela e por alguns segundos imaginei-a comendo minhas vísceras e fustigando-me com aqueles raivosos olhos negros.

Realmente minhas vísceras se contorceram ao vê-la. Era como se eu já esperasse por esse encontro há muito tempo. Então ficamos os dois parados e em silêncio, ao que me pareceu, por duas ou três eternidades.

Até que ela abaixou os olhos que me fuzilavam e tocou uma musica ao piano. A cada nota tocada uma cor da mocinha se embaralhava, até que ao final ela era aos meus olhos apenas um borrão de branco, vermelho e cinza...


Acordei no meu quarto, todo sujo de tinta e segurando firme a tela que eu estava pintando a minha derradeira mulher e, ao levantar a tela, percebi que eu no meio da minha bebedeira havia pintado alguma coisa nela: um borrão de tinta branca, vermelha e cinza.

Fiquei assustado. “Será que vivi apenas outra história pintada”, pensei comigo, mas quando virei a tela de costas percebi um nome escrito na madeira, com uma redonda e descaída letra. Lia-se perfeitamente, embora estivesse escrito suavemente à lápis, o nome “Manuela”.





CAPÍTULO II - O último andar

Lá estava eu, pela terceira vez só no dia de hoje, a andar sem rumo pelos corredores do casarão. Fazer caminhadas pelos cantos mais escuros e sem cores é um esporte que eu pratico desde garota.
O meu andar preferido sempre fora o último. Era onde morava a velha pianista, e eu adorava andar pelos corredores ao som de Chopin e Beethoven e tantos outros sons que saiam do piano da Senhora Dellas. Ela mesma me ensinou os nomes: Mozart, Bach, Vivaldi... Eram tantos e tinham nomes tão diferentes que eu me encantava só em pronunciá-los. Ela me confidenciou que conhecera todos eles, jamais poderia eu saber se era delírio ou a mais pura verdade. Preferia acreditar nas suas histórias porque elas eram a porta mágica para eu sair do casarão.
A Senhora Dellas morreu há uns anos atrás, o corpo foi mandado de volta pra Espanha, lugar de onde ela veio. Desde sua morte o corredor do último andar ficou mais frio e ainda mais vazio.
A melhor coisa sobre ele é que ninguém, além de mim, tem coragem de subir até lá. Até mesmo os meninos, tão cheios de coragem e sempre dispostos a enfrentarem fantasmas, ficaram amedrontados com os boatos que o espírito de Dellas ainda tocava o piano.
Eu fujo para lá sempre que ouço as batidas na porta do meu quarto. Depois da meia-noite as batidas são mais freqüentes e o destino que me fora traçado desde muito menina irrompe pela porta sem ao menos perguntar meu nome. É nessas horas que o som do piano sempre fica mais alto nos meus ouvidos para eu não ter que ouvir gritos, suspiros, urros e nem sentir o gosto de sal e o cheiro das colônias baratas.
Mesmo depois de tantos anos as pessoas ainda fogem do ultimo andar, para alguém subir lá é um sacrifício, as crianças são terminantemente proibidas pelos pais, ninguém mais aluga quartos por lá, e faxina por lá não se faz há tempos. E fui eu quem decidiu assim. Toco o velho piano da Senhora Dellas sempre que alguém se arrisca a subir até lá e essa foi a melhor maneira que encontrei de manter o lugar só meu. Afastei tudo e todos do único lugar que posso voltar a ser eu, e não “uma mulher de mil encantos”, como bem diz o anúncio. Construí o meu próprio paraíso no limbo e lá todos têm medo demais para entrar. Viver em um lugar assombrado é a melhor maneira de matar os próprios fantasmas.
O silêncio do meu mundo é o meu melhor amigo e eu estava, como sempre, conversando com o silêncio quando aqueles passos nos interromperam. Lá estava ele, um intruso no meu espaço. Não bateu a minha porta como os outros, este fez pior, entrou sem bater. Mas ao invés de tocar o piano para afugentar o invasor da minha fortaleza, esperei como uma combatente de guerra, pronta para atacar.

domingo, 28 de agosto de 2011

CAPÍTULO I - De carne

“Os sábios sempre dizem o quanto a vida é simples e os sabidos sempre vivem sem ouvir!” - meu pai não se cansava de me dizer tal frase e ela me acompanhou durante toda a minha infância.

Meu pai não era sábio, tampouco eu era sabido. Mas me tornei o exato alvo do ditado de meu pai, me tornei o que o dito pedia para que eu não fosse: um pintor anônimo que não sabe o segredo da vida, pois não vive.

Moro num quarto alugado de um velho casarão. Até o começo do ano meu pai e eu morávamos nessa pocilga, mas o velho faleceu de tuberculose e me deixou uma pensão mísera de ex-combatente de guerra, algumas telas, roupas sujas de tinta, uma moldura velha de ouro e a solidão.

Nesse casarão moram mais umas trinta famílias apertadas em minúsculos quartos como pencas de uvas amassadas aos pés dos sujos dos trabalhadores. Não sei ao certo dizer quantos eles são, não reparo muito neles só sei dizer que são de carne, tem cheiro de carne e nela se resumem. Eles gritam, xingam, sujam, se batem e se debatem, e só por isso sei que eles existem e estão perto, pois as paredes finas do quarto não abafam seus urros animais.

As pessoas não costumam gostar de mim também e assim permaneço de bem comigo mesmo, pois sei que só encontrarei em mim o sorriso que eu preciso ver, somente eu posso me fazer feliz, então eu sigo tristemente certo de que tanto faz a minha sociabilidade e aceitação.

Eu tenho um dom, que é a única herança genética de meu bondoso pai: crio na tela paisagens e pessoas que não existem. Não miro, não copio, não recrio, não imito a vida, apenas pinto o que sai da minha cabeça. Porem eu carrego uma maldição herdada de minha solidão: vivo dentro das histórias de vida dos personagens dos quadros e dou numerosos passeios pelas paisagens que invento.

Não gosto muito de sair do meu quarto. A cidade fede, suga, ensurdece, arranha e mata. Só saio para suprir uma real necessidade, ou seja, só para recompor meus sortimentos de comida e higiene.

Considero-me sexualmente ativo. Durmo com uma Madonna por dia. As mais belas mulheres que eu já vi se deitam comigo sem que eu lhes diga nada e fazem o que eu quero sem que eu tenha que lhes ordenar. E o melhor é que elas cheiram a vermelho, branco, preto, verde... e somem quando quero dormir. Mas eu me cansei dessa vida de solteiro e estou pintando aos poucos a mulher da minha vida. Aquela que vou colocar na velha moldura de ouro de meu pai e que viverá comigo para sempre...


Assim eu pensava. Assim eu era. Assim eu te diria. Assim permaneceria e morreria. Pintando a cova, as flores, as choradeiras e os meus veladores.

Eu estava certo de tudo: Da minha não-vida, da ilusão de completude, da minha solidão e do refúgio e companheirismo de meus quadros... até o dia em que me embebedei com os dois jarros de vinho que desenhei em um guardanapo sujo e saí pela madrugada fria, como as minhas paredes de gesso encarquilhadas, e encontrei, pelo casarão, Manuela... Manuela de carne, muita carne e que, encantadoramente, cheirava a tons de rosa e branco.