“Os sábios sempre dizem o quanto a vida é simples e os sabidos sempre vivem sem ouvir!” - meu pai não se cansava de me dizer tal frase e ela me acompanhou durante toda a minha infância.
Meu pai não era sábio, tampouco eu era sabido. Mas me tornei o exato alvo do ditado de meu pai, me tornei o que o dito pedia para que eu não fosse: um pintor anônimo que não sabe o segredo da vida, pois não vive.
Moro num quarto alugado de um velho casarão. Até o começo do ano meu pai e eu morávamos nessa pocilga, mas o velho faleceu de tuberculose e me deixou uma pensão mísera de ex-combatente de guerra, algumas telas, roupas sujas de tinta, uma moldura velha de ouro e a solidão.
Nesse casarão moram mais umas trinta famílias apertadas em minúsculos quartos como pencas de uvas amassadas aos pés dos sujos dos trabalhadores. Não sei ao certo dizer quantos eles são, não reparo muito neles só sei dizer que são de carne, tem cheiro de carne e nela se resumem. Eles gritam, xingam, sujam, se batem e se debatem, e só por isso sei que eles existem e estão perto, pois as paredes finas do quarto não abafam seus urros animais.
As pessoas não costumam gostar de mim também e assim permaneço de bem comigo mesmo, pois sei que só encontrarei em mim o sorriso que eu preciso ver, somente eu posso me fazer feliz, então eu sigo tristemente certo de que tanto faz a minha sociabilidade e aceitação.
Eu tenho um dom, que é a única herança genética de meu bondoso pai: crio na tela paisagens e pessoas que não existem. Não miro, não copio, não recrio, não imito a vida, apenas pinto o que sai da minha cabeça. Porem eu carrego uma maldição herdada de minha solidão: vivo dentro das histórias de vida dos personagens dos quadros e dou numerosos passeios pelas paisagens que invento.
Não gosto muito de sair do meu quarto. A cidade fede, suga, ensurdece, arranha e mata. Só saio para suprir uma real necessidade, ou seja, só para recompor meus sortimentos de comida e higiene.
Considero-me sexualmente ativo. Durmo com uma Madonna por dia. As mais belas mulheres que eu já vi se deitam comigo sem que eu lhes diga nada e fazem o que eu quero sem que eu tenha que lhes ordenar. E o melhor é que elas cheiram a vermelho, branco, preto, verde... e somem quando quero dormir. Mas eu me cansei dessa vida de solteiro e estou pintando aos poucos a mulher da minha vida. Aquela que vou colocar na velha moldura de ouro de meu pai e que viverá comigo para sempre...
Assim eu pensava. Assim eu era. Assim eu te diria. Assim permaneceria e morreria. Pintando a cova, as flores, as choradeiras e os meus veladores.
Eu estava certo de tudo: Da minha não-vida, da ilusão de completude, da minha solidão e do refúgio e companheirismo de meus quadros... até o dia em que me embebedei com os dois jarros de vinho que desenhei em um guardanapo sujo e saí pela madrugada fria, como as minhas paredes de gesso encarquilhadas, e encontrei, pelo casarão, Manuela... Manuela de carne, muita carne e que, encantadoramente, cheirava a tons de rosa e branco.
Muito bom! Capítulos curtos sempre me enchem de ânimo para leitura!
ResponderExcluircaio vargas