De onde ele veio? Com certeza devia ser um novo inquilino, ou não se arriscaria a subir até aqui, não teria coragem de desafiar os mistérios narrados pelos moradores do casarão sobre este andar. Eu estava lá, sobre o meu piano, na iminência de tocá-lo e assim fazer aquele homem desaparecer do meu mundo. Fitava-o curiosa e pronta para atacá-lo com as notas mais tristes e fúnebres que poderiam sair do meu instrumento.
Da pouca luz que havia sobre nós naquele cômodo pude ver que suas roupas eram surradas e maltrapilhas, decoradas com muitas cores, pelas manchas de dedos limpados nela. Seria ele um artista? O curioso é que ele não tinha o cheiro da boêmia a qual eu estava acostumada. Cheirava a tinta fresca e uma lavanda que não conseguia me recordar de que flor pertencia. Não era truculento e nem grosseiro, com certeza não era daqui. Não podia pertencer a esta casa e a tudo que ela abriga.
Eu, sim, pertencia a este lugar, e carregava comigo toda a impureza que esse ambiente guardava. Ele nada parecia com as paredes frias e sem vida dessa casa, e nem com os corredores escuros e solitários.
Eu não podia confiar, eu não devia trair e deixar que adentrassem o meu local seguro, que roubassem tudo que eu construí, melhor ainda, que eu inventei. Ele parecia tão perdido, balbuciou algo que não pude compreender, e ao invés de me atacar como eu estava pronta para fazer, pude ver, sob a única luz que incidia na sala do piano, que me lançava um sorriso, como há muito tempo eu não via. E como há muito tempo eu não retribuía.
Os sorrisos são brindes à um bom pagador, custam um preço mais elevado, essa foi a maneira como sempre fui ensinada. Dar um sorriso somente mediante pagamento. Nem me lembro mais a última vez que pude sorrir por vontade. Talvez tenha sido na época que o casarão ainda era cenário das grandes festas e sobrava muita comida para todos. Tínhamos naquela época motivos de sobra para sorrir, depois daqueles tempos o sorriso passou a ser artigo de luxo e raro. Mas pela primeira vez em muito tempo um ímpeto leve, sereno, veio a ponto de explodir nos meus lábios como que por encantamento. Eu retribui o sorriso para ele.
Mas, pela pouca luz sobre mim, ele não viu.
Por alguns segundos eu havia esquecido completamente o porquê eu estava sobre o meu piano, minha reação feroz em afugentá-lo passou e toquei uma música suave e bela. As notas e a melodia me levaram a tocar com uma felicidade nunca antes sentida, e ao mesmo tempo um pavor se apossava de mim. Ao fim da última nota, eu estava novamente sozinha no último andar, o homem de vestes com manchas de tinta havia se apagado dos meus olhos.
Ao aproximar o olhar do chão onde ele estava postado vi um guardanapo sujo jogado e ao cheirá-lo senti um forte cheiro de vinho tinto.
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