segunda-feira, 29 de agosto de 2011

CAPÍTULO III - O borrão de tinta

Como eu queria ter levado comigo mais guardanapos com jarros de vinho desenhados para continuar sorvendo a embriaguês necessária para que eu me permitisse o fulgor do não-juízo!

Eu cambaleava pelos corredores às tontas, mas com uma destreza nunca antes explorada por mim. Eu sabia bem onde queria ir e ia sem querer saber. Nessa hora eu me senti o sabido do ditado do meu pai.

Era frio, mas por baixo de minha casaca eu suava feito um leitão, um pouco pela bebida e um pouco pela a aventura de não ser tão eu o quanto me resguardava.

O casarão era só uma fachada velha que abrigava miseráveis. Tenho a exata sensação de como seria viver na rua, ao relento, pois nas noites de inverno o frio trincava os copos de vidro e nas tardes de verão o calor fazia derreter o gesso e pingar nas testas dormentes.

Não havia ninguém àquela hora vagando pelo casarão. Não havia luz e não havia razão. Somente a minha inconsciência a guiar meus trôpegos pés pelo assoalho rangente. Subi até o último patamar da casa e encarei o corredor sombrio tentando alcançar a luz que surgia de uma fresta de porta entreaberta.

Parecia que eu era um desses espíritos clichês a trilhar o caminho da luz no túnel escuro da morte. Mas não encontrei Deus depois da luz. Encontrei uma moça frágil de uns vinte e seis anos debruçada a um piano velho. Suas melenas castanhas desenhavam o contorno de seu rosto e se precipitavam até seus seios robustos; seus olhos eram de susto e surpresa; sua boca era de não falar; suas mãos eram de dama e suas vestes de donzela e por alguns segundos imaginei-a comendo minhas vísceras e fustigando-me com aqueles raivosos olhos negros.

Realmente minhas vísceras se contorceram ao vê-la. Era como se eu já esperasse por esse encontro há muito tempo. Então ficamos os dois parados e em silêncio, ao que me pareceu, por duas ou três eternidades.

Até que ela abaixou os olhos que me fuzilavam e tocou uma musica ao piano. A cada nota tocada uma cor da mocinha se embaralhava, até que ao final ela era aos meus olhos apenas um borrão de branco, vermelho e cinza...


Acordei no meu quarto, todo sujo de tinta e segurando firme a tela que eu estava pintando a minha derradeira mulher e, ao levantar a tela, percebi que eu no meio da minha bebedeira havia pintado alguma coisa nela: um borrão de tinta branca, vermelha e cinza.

Fiquei assustado. “Será que vivi apenas outra história pintada”, pensei comigo, mas quando virei a tela de costas percebi um nome escrito na madeira, com uma redonda e descaída letra. Lia-se perfeitamente, embora estivesse escrito suavemente à lápis, o nome “Manuela”.





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