Lá estava eu, pela terceira vez só no dia de hoje, a andar sem rumo pelos corredores do casarão. Fazer caminhadas pelos cantos mais escuros e sem cores é um esporte que eu pratico desde garota.
O meu andar preferido sempre fora o último. Era onde morava a velha pianista, e eu adorava andar pelos corredores ao som de Chopin e Beethoven e tantos outros sons que saiam do piano da Senhora Dellas. Ela mesma me ensinou os nomes: Mozart, Bach, Vivaldi... Eram tantos e tinham nomes tão diferentes que eu me encantava só em pronunciá-los. Ela me confidenciou que conhecera todos eles, jamais poderia eu saber se era delírio ou a mais pura verdade. Preferia acreditar nas suas histórias porque elas eram a porta mágica para eu sair do casarão.
A Senhora Dellas morreu há uns anos atrás, o corpo foi mandado de volta pra Espanha, lugar de onde ela veio. Desde sua morte o corredor do último andar ficou mais frio e ainda mais vazio.
A melhor coisa sobre ele é que ninguém, além de mim, tem coragem de subir até lá. Até mesmo os meninos, tão cheios de coragem e sempre dispostos a enfrentarem fantasmas, ficaram amedrontados com os boatos que o espírito de Dellas ainda tocava o piano.
Eu fujo para lá sempre que ouço as batidas na porta do meu quarto. Depois da meia-noite as batidas são mais freqüentes e o destino que me fora traçado desde muito menina irrompe pela porta sem ao menos perguntar meu nome. É nessas horas que o som do piano sempre fica mais alto nos meus ouvidos para eu não ter que ouvir gritos, suspiros, urros e nem sentir o gosto de sal e o cheiro das colônias baratas.
Mesmo depois de tantos anos as pessoas ainda fogem do ultimo andar, para alguém subir lá é um sacrifício, as crianças são terminantemente proibidas pelos pais, ninguém mais aluga quartos por lá, e faxina por lá não se faz há tempos. E fui eu quem decidiu assim. Toco o velho piano da Senhora Dellas sempre que alguém se arrisca a subir até lá e essa foi a melhor maneira que encontrei de manter o lugar só meu. Afastei tudo e todos do único lugar que posso voltar a ser eu, e não “uma mulher de mil encantos”, como bem diz o anúncio. Construí o meu próprio paraíso no limbo e lá todos têm medo demais para entrar. Viver em um lugar assombrado é a melhor maneira de matar os próprios fantasmas.
O silêncio do meu mundo é o meu melhor amigo e eu estava, como sempre, conversando com o silêncio quando aqueles passos nos interromperam. Lá estava ele, um intruso no meu espaço. Não bateu a minha porta como os outros, este fez pior, entrou sem bater. Mas ao invés de tocar o piano para afugentar o invasor da minha fortaleza, esperei como uma combatente de guerra, pronta para atacar.
Um casarão cheio de charme!
ResponderExcluircaio vargas