sábado, 3 de setembro de 2011

CAPÍTULO VII - Olhos de vagalume

Assim que terminei o quadro não suportei mais olhá-lo. Tinha que dar um fim a esse sacrilégio e a esse tormento que, cada vez mais, me cegava e que acabaria por pôr um fim a minha vida perfeita de outrora. Eu queria ser aquele mesmo “eu” de antes o “eu” estranho à todos, porém profundo conhecedor de sim próprio e se eu ficasse preso as imagens de Manuela eu nuca mais voltaria a pintar aos meus desejos os meus desejos.

Aquela noite, aqueles olhos, aquela música, aquele nome, tudo aquilo tinha que sumir da minha mente, para que eu pudesse me dedicar a minha verdadeira missão: pintar a derradeira mulher de minha vida.

Botei a tela numa moldura qualquer, que estava jogada atrás do armário, envolvi o quadro com alguns panos e saí sorrateiro, me esgueirando pelos cantos do casarão, para não ser notado. Aos poucos e vagarosamente fui chegando perto do quarto do piano sem trombar com nenhuma daquelas criaturas mortas viventes da casa.

Abri, com delicadeza, a porta, esperando não ter nenhuma surpresa sentada ao piano. O quarto estava vazio. Coloquei o quadro próximo ao piano e voltei, tão rato como havia ido, e felizmente não esbarrei em nenhum velho tísico ou cafetina podre ou operário sujo.

Já no quarto, peguei a tela borrada de tinta, que eu havia separado para pintar o quadro da mulher de minha vida, apaguei o nome Manuela de seu verso e passei três mãos de tinta branca por cima daquele horroroso borrão.

Quando terminei de apagar os resquícios daquela noite atípica, naquele encontro atípico com aquela moça atípica, senti um típico frio na alma, que me confortava e acalentava. Eu estava voltando ao meu normal. Então, peguei uma tinta preta, apaguei os meus olhos e dormi.

Era tudo preto como a tinta enquanto eu dormia. Até que salpicos de tinta verde começaram a surgir e desaparecer frente a minha pestana, com o tempo e a não sincronia do ascender-apagar dos salpicos verdes, percebi que se tratavam de vagalumes. Comecei a persegui-los até que uma mão me puxou para um canto da escuridão e soprou nos meus ouvidos a frase “Os sábios sempre dizem o quanto a vida é simples e os sabidos sempre vivem sem ouvir!”.

Com tinta branca avivei meus olhos. Acordei pingando suor e com a respiração descompassada, mas rapidamente me recompus e, com gotas de azul, pintei um ligeiro lacrimejar e terminei um quadro onde dois olhos se contradiziam e se complementavam: um estava fechado, tranqüilo, sonhando e o outro aberto, irritado e lacrimejando.

Ao terminar a tela um calor tomou posse de minha alma, como se eu houvesse bebido água fervente. Comecei a escutar ao longe a sublime música que Manuela havia tocado para mim ao se transformar em borrão de tinta e não era fruto da minha saudade ou uma simples alucinação. Era Manuela tocando. Era ela!

Eu estava perdido. Ela não sumiria mais de mim!

Na tela a minha frente, agora, eu via dois olhos fechados e descansados e tenho certeza de que sonhavam!

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