sexta-feira, 9 de setembro de 2011

Capítulo X- O baú de sussurros



A canção que eu tocava ao piano ecoava por toda a casa e me levava a lembranças que eu não mais recordava. As canções que saem do piano têm vida própria, tem alma e coração. Estão vivas e são a única parte que está viva em mim. Eu só estou viva quando estou ao piano. E o curioso é que sentada ao piano eu sou apenas uma lenda, uma história contada pelos corredores, um medo no ouvido de cada morador da velha casa. E por mais surpreendente que possa parecer, é este o único momento em que eu vivo intensamente, a cada nota eu respiro, a cada nota eu amo, a cada início de uma nota eu renasço e ao fim dela eu morro e desvaneço em mil pedaços.
Não estou viva no meu verdadeiro quarto, lá eu não lembro nada do que vivi, tenho apenas fragmentos de um passado, relâmpagos de uma história, luzes sobre acontecimentos isolados. Nada para mim está vivo fora do quarto do piano.
 A mulher na qual me transformo todas as noites se perfuma sempre e se enfeita com brilhos, maquiagem e flores na expectativa de cumprir bem o seu papel e assim, garantir o seu sustento. Ela nada mais é do que cheiros e enfeites. Dela não saí calor e nem o gozo necessário. É morta, é fria, e indiferente a qualquer emoção. 
Sempre toquei o piano no intuito de afastar de mim aquelas criaturas que rondam a casa como almas a serem salvas no purgatório. Naquele momento eu tocava pela intenção oposta, eu queria que ele viesse até mim. Gritava em notas ao piano para que aquele pintor ouvisse meu chamado. Eu tocava para que cada nota adentrasse a porta de cada quarto, percorresse cada corredor e descessem as escadas invadindo os ouvidos de todos aqueles que estavam ali.
As lágrimas desciam no meu rosto sem que eu percebesse, e eu fazia aquilo como se fosse a última coisa que iria fazer.
E de repente a porta do quarto se irrompe!
Na minha frente está novamente o homem que eu havia visto na minha lembrança, deitado sobre os girassóis. Era ele! E dessa vez o a luz do sol invadia as frestas das janelas e eu podia vê-lo mais bonito que qualquer pintura, mais real que qualquer nota musical.

Tudo havia paralisado na minha frente. De que adiantava aquele encontro, de que adiantava aquela presença se o medo ainda me impedia de pronunciar qualquer palavra. Eu congelei diante dele, e havia me tornado novamente a mulher fria e apática que habita o meu quarto.
Diante do nosso silêncio de alguns segundos o homem caiu sobre o piano e tombou para o chão. Disparei meu corpo sobre o dele para trazê-lo de volta. Ele estava frio e suava, então percebi que seus lábios se moviam e ele balbuciou umas palavras, aproximei meu ouvido de sua boca, ela estava quente em comparação ao resto de seu corpo que permanecia frio. Ele sussurrou palavras soltas “sábios... dizem...vida simples...,sabidos...sem ouvir”
Não me parecia um devaneio seu, suas palavras me soavam familiar, e de tão familiar chegaram a me arrepiar a espinha.
Saí do quarto com o homem ainda desacordado. Fui buscar um pouco de água para acordá-lo, mas também estava indo atrás daquelas palavras. Minha intuição gritava aos meus ouvidos que eu conhecia aquelas palavras de algum lugar.
Fui até meu quarto, de número 406, abri a porta, arrastei a cama e encontrei o que procurava. Era um baú, onde guardava tudo que representava algum resquício de passado, abri o baú e comecei a cavar dentro dele, poeiras, trapos, alguns insetos, tudo voava pelos ares enquanto fazia minha busca pelo que eu obviamente já sabia o que era. E embaixo de uma camada de sedas lá estava o que eu buscava: uma moldura... Apenas uma moldura, sem pintura alguma, e atrás dela estava escrito a frase que me fez recordar as palavras do homem desmaiado no quarto do piano. Estava escrito a lápis: “Os sábios sempre dizem o quanto a vida é simples e os sabidos sempre vivem sem ouvir!”.
Voltei ao último andar, ele não estava mais lá.

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